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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

(1) Carta

Esta não é a forma mais adequada, melhor dizendo, a mais pontual, confesso - mas aí, aí haveria algo de tamanha frieza de minha parte que, por si só, tratar-se-ia de única incompatibilidade com o intuito de tamanhos dizeres -, esta não é a forma mais pontual para se iniciar uma carta (um cumprimento, uma apresentação formal). Mas, não obstante, formalidades jamais me ditaram rumos e condutas. Um comportamento inadequado, é bem verdade... Pois bem. Conto com o pouco conhecimento - ou o conhecimento suficiente, creio que daria no mesmo - que você possui sobre mim. E assim, assim espero que entenda de fato a ansiedade e a urgência presentes nestas linhas que escrevo (constantes inconstâncias).
Um dia de chuva. Sim, minha amiga, um dia de chuva. Intensa, rítmica, frequente. Daquelas chuvas torrenciais que causam, ainda que haja tão somente ínfimos aborrecimentos a ser lembrados, substantivos abalos tanto introspectivos quanto superficiais. Um dia em que não se sabe de fato o que fazer, para onde ir etc. Fica-se apenas juntando e conferindo ideias e tarefas, coisas das quais se é impossível escapar - essa maldita chuva! O quintal sujo e encharcado, paredes completamente úmidas, roupas inúteis no varal, montes insuportáveis de lixo na cozinha e no banheiro, a despensa vazia, contas a pagar... A chuva. Nada além desse indesejável fenômeno que insiste deselegantemente em teimosias e insensibilidades. Intolerância, pois! Corre-se para o quarto, olha-se no espelho e se depara unicamente com desagradáveis descobertas. Ah!, minha incrível amiga... Tantas pendências, tantas perturbações - tanto tempo ainda a esvair... E o que se pode fazer a respeito? Aguardar, tão somente aguardar... Segundos, minutos, horas inteiras - instantes fadados à inoperância. E tudo, absolutamente tudo por causa da chuva. Parece que não haverá mais fim! E o caminho se encontra intransponível, um hiato;  não há mais nada além de angústia e impaciência. Perde-se o juízo, ganha-se devaneios. Os sonhos, os tais sonhos - tão temíveis e perigosos!... E um arco-íris que jamais anunciar-se-á. Sem mais nem mais. (E é assim, estimada amiga, é justamente assim que me sinto neste momento ímpar. Só que não está chovendo agora - trata-se de você, caríssima amiga. Sim, você, apenas você... Você e essa minha iníqua e pungente espera.)
Pois bem. Parte de meus sentimentos se manifesta nestas linhas - ainda que pobres, desprovidas de tom e sensualidade. Mas, não obstante, falta-me outra breve explicação. Assim feito o início, não sei bem como formalizá-la - talvez seja minha ineloquência atuando em horas tais. E o pior, em tais horas, por mais importante que seja a laconicidade, é isso exatamente o que não consigo atuar com excelência - o ser breve, sintético. As mãos tremem, a caneta vibra - ela simplesmente não respira... Os olhos, amiga, os olhos entram num transe raro e profundo, e minha mente se torna incapaz de contê-los - pensamentos, teses, impressões etc. E sempre, sempre me situo um passo a frente de tudo aquilo que faço e absorvo, sem exceção - principalmente agora, neste momento (mais uma vez).
Por quê? Ora, minha amiga, creio eu que haja aí, ainda que não passe tão somente de uma hipótese, acredito mesmo que advenha dessa indagação o real ensejo para minha explicação. A desculpa que usarei aqui para justificar tal estado de espírito me é de grande valia - por favor, não ria de mim, grande amiga... A angústia de discorrer sobre a própria angústia, digo eu! O fim em si próprio, a obrigação e a impossibilidade de cumpri-la - a sua antipatia afinal. Não sei, é possível que eu esteja me perdendo novamente... Perdão, perdão! Minha cabeça dói pelo simples ato de pensar em tamanha explicação - ah!, eu sou mesmo um homem ridículo...
Falta-me, sim, algo. Vejo-me feito andarilho de memórias... Memórias e sonhos. Passado e futuro, minha amiga. O que se foi - e que apenas agora, quando não há mais qualquer espécie de retorno, apenas agora se impõe feito necessidades inadiáveis perante todas as outras questões, inclusive as eternas -, o que se foi de fato e o que poderá vir a ocorrer - sabe-se lá, sabe-se lá sob quais modos, caríssima amiga! Principalmente aquilo em que se gasta os mais empenhados esforços para que se torne presente, real - eles sempre serão insuficientes. Tudo em vão, tudo em vão! Nada criar-se-á; nada acontecerá. Mas, não obstante, a esperança, essa pústula incorrigível, amiga, sim!, essa mesma, a esperança...  Ela inflexivelmente tomará partido a favor das ilusões e das fantasias. Temerosamente, irremediavelmente, minha querida amiga... É inevitável: continuar-se-á eternamente desejando o viver, e o que tão somente se consegue fazer é perder tempo - por toda a vida, por toda a vida!... (Trata-se da única verdade que encontro diante de mim.)
  O futuro. O futuro inexiste - a não ser através desses sonhos que, cedo ou tarde, encerrar-se-ão em decepções. Por vezes, o alívio se dá como anúncio, é bem verdade. Mas, não obstante, nas últimas semanas só me vêm dissabores, pois jamais, minha amiga, jamais a realidade sob meus olhos mostrar-se-á mais interessante e inspiradora do que quaisquer devaneios que porventura eu possa criar. Portanto, o futuro, doce amiga, este não me é encorajador. E a ansiedade, e a espera, e a angústia, e aquele algo que me falta; tudo me permite apenas o protesto - e mais nada, mais nada! E assim, sem mais nem mais, e assim meu instante se faz por voraz, perturbador, melancólico. E o sentido e a razão insistem tão somente nas dissonâncias - eles sequer parecem de fato existir...
Mas, não obstante, resta-me o passado. Ah!, o passado... Deste sou capaz de separar raríssimas datas, se não alegres, saudosas. Um dia de sol, uma trégua de toda a miséria, ocasiões ímpares de instantâneas felicidades. O arfar frenético de um cachorro, uma noite de esperanças, luzes, sons, movimento - um gesto, uma dor, um sentimento compartilhado. Boas recordações afinal. Momentos espaçados, despojados de nexo e motivo. Subjetivos. Distintos, memoráveis; banais, venturosos. Apenas dados, informações perdidas em uma história sem graça. Tão raros - e tão comuns, minha amiga, tão comuns... -, tão raros que  tornar-se-ia impossível desenhar um ser, uma identidade de verdade a partir deles. No entanto, uma explicação. Ainda que a ordinariedade deste ser seja irrefutável, por mais que não haja elegância nenhuma em registros tais, uma explicação há. Sim, incomparabilíssima amiga! Um elo; inefável, mas um elo. Uma justificativa. Uma luta - invencível, admito. Alguém diferente de mim, alguém singular. A matriz, a arte-final. Uma imagem sublime, uma inata utopia. Uma, uma, bem, como dizer, minha amiga... Você - sim, alguém como você. (Ninguém mais além de você.)
E isto é tudo. São palavras inúteis, eu sei, linhas inconvenientes que servem tão somente para lhe manchar os olhos. E os interesses, também não os há. Novidades, desconheço. Apenas uma necessidade, talvez a única necessidade, o único porém que me impossibilita de puxar o gatilho (eu não estou sendo poético, minha amiga, em nenhuma palavra desta carta consegui sê-lo), a singular finalidade de minha sobrevivência se trata em alcançar alguma certeza em seus sorrisos. Então, como quem finge nada querer, pergunto-lhe mais uma vez - conquanto sem a promessa de ser esta a última vez. Pergunto-lhe o que suponho já estar presente em suas próprias desconfianças, vindo de mim - a única pergunta que insisto em lhe fazer há tanto tempo. Ainda que não possua direitos de lhe exigir alguma resposta, por mais que a minha insignificância - e esta é grande, ah!, como é grande, minha amiga... -, por mais que esta seja perturbadora e insignificante, perguntar-lhe-ei. Eu não temo a ousadia, mas a resposta apenas... Por isso, bem, e não há nada mais que importe em meus pensamentos agora - agora, antes e depois... E agora, justamente agora, começou a chover! Oh!, deus, por deus! A chuva... E então, você é feliz? É feliz, diga-me... É isso e tão somente isso o que preciso saber. Uma noite, ainda que sob tamanha chuva, uma noite inteira de inquietude por sua felicidade! E então, então minha espera findar-se-á - e sairei correndo pela chuva, minha antiquíssima rival, sob água e lágrimas, de coração pulsante, riste, destemido. E assim afundar-me-ei em meus lamentos - não mais tão lamentáveis como deveriam ser -, minhas ânsias, meus anelos, pois nada, nada importaria mais!... Agora, responda-me. Ou melhor, não! Não diga palavra alguma. Conceda-me o conforto da dúvida - ou a esperança, a esperança, é bem verdade! Pois eu não viveria sem a sua felicidade; já a minha ignorância em nada vale. Nada! Não, minha senhora, não responda, por favor; deixe-me viver com tal alento. Mas, não obstante, diga que é feliz. Minta se preciso for... E por um breve, raro e ínfimo momento, faça-me também feliz - ainda que eu não possua ciência nenhuma a respeito. Pois não é esta de fato a residência da esperança - o não saber? Muito bem. Apenas assim, minha exemplar amiga, apenas assim mediocridades serão capazes de seguir os seus ridículos caminhos - pois para algum lugar é preciso ir! E isto, isto é mesmo tudo. Sem mais nem mais, despeço-me. (Não antes sem ousar imaginar... É feliz?)
Oh!, dor de cabeça!, oh!, chuva que não para... Amanhã, só o amanhã me resta afinal. E amanhã, amanhã tudo estará resolvido!

2 comentários:

£an disse...

Hahaha... Lembra-se minha opinião sobre esta Carta? A Chuva... Toda a angústia... Um paralelo entre as forças da natureza e nossas próprias forças, as forças interiores humanas - porque não seriam naturais também? A angústia quase palpável do texto... O barulho quase audível da chuva. A emoção nas palavras escritas com uma ânsia e sofreguidão distintas. Eu até visualizo você pronunciando este monólogo mentalmente. As palavras saindo da mente, indo para as mãos trêmulas, escrevendo ágeis, num papel em branco. Posso imaginar a chuva e a angústia... Mas como havia dito anteriormente, ainda me remete a idéia de que, comos os fenômenos naturais tempestuosos, os nossos próprios instintos em fúria também tendem ao mesmo fim: o fim, o término, passar.

P.S.: Está ficando um perfeito Raskólnikov.

Grande abraço, Sonny! *-*

Fabíola disse...

A chuva... não somente mais um pretexto para mergulhar na dúvida? Angústia. Nesta tarde quente e ensolarada de sábado, sua carta me transportara a velhas e sempre revisitadas perguntas... Se sou feliz? Rs... sou um mistério para mim. Mas afinal, o que parece melhor? Viver, ou saber que se está vivendo? Gostei muito de seus escritos! Lindos... Surpresas...