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sábado, 16 de janeiro de 2010

(2) Discurso

Chove. Mais uma vez na semana, chove. Se ainda esta fosse útil para lavar o que há por dentro, senhores, eu haveria de suportá-la. Impossível, inviável, digo eu. Isso é sentença, fato - e fado. Hei de viver, conviver com a lama. Aqui não há notoriedade alguma, meus senhores, apenas solidão. Pertenço aos normais, ao povo; sufocado e abafado pela incrível e imensurável massa indigna de desconhecidos. Àqueles que nascem e simplesmente morrem. Sôfrego, côncavo, desprovido de fortunas e gracejos. Nenhuma particularidade, beleza ou talento. Fracassos, tão somente fracassos. Palavras e fracassos...
Todos os sonhos são ridículos. Ontem, minutos antes de dormir, veio-me em mente certo pensar - certo pesar, certo penar... Explico-me. Não pela necessidade - não mais, senhores -, porém unicamente pela total deselegância destes meus momentâneos atos. Coisa curiosa, justamente nas horas mais vazias é que cometemos as maiores vilezas das quais somos capazes de cometer. E apenas sob essa condição, senhores, vestindo o traje vil das desistências, ultrapassando normas e condutas, tão somente assim é que revelaremos a sinceridade e a complexidade de nossos interesses - a nossa essência, afinal de contas. Então, depois de todo o despojo e de toda a amoralidade que conseguirmos digerir, apenas depois disso é que seremos de fato verdadeiros - torpes, egoístas, rancorosos, vingativos. E quem não é, senhores... Pois bem, e quem não é assim?
Noite passada, diante de esperas e temores, presenciara o fim de mais um sonho, ainda que não o último - infelizmente, é bem verdade, restam-me outros, senhores, outros tantos mais... Um diálogo terminal e uma descoberta. Tudo envolto pela chuva mais enfadonha, incessante tal qual a angústia de longa data que me acompanha em noites insones como essa de ontem. Uma presença, senhores, uma constante presença em minha vida e um ideal - finados. Eu não sou de fato aquilo que ansiava ser. A consciência e o espelho jamais me trarão boas notícias. E o amor - e a paixão, e a idolatria, e a insânia... O amor não mais possui a propriedade de sustentar levezas em meu ser. Não há esperanças - assim como supostamente se define todo o mérito de minhas escolhas. Há apenas sobrevivência: asfixiada, sonegada, indesejada. O subsolo... Muito bem, muitíssimo bem! E tudo isto, senhores, tudo isto revelado numa só noite - tão somente numa insípida, inodora e descolorida noite.
Não, senhores, jamais a aspiração, a aspiração em si, esta jamais será a minha salvação. Eu não sou Fausto; eu não creio em deuses e anjos - mas unicamente no diabo, unicamente no diabo! O fato de ter desejado a imensidão, a grande obra, enfim, nada disto disfarçará minhas qualidades. E o comum e o vulgar tornar-me-ão como um todo. Eu seguirei longe, senhores, omitido do extraordinário, das ímpares conquistas. Um mero espectador - ou seria apenas um agente das suposições? Perguntas, reflexões vãs; nenhuma ação. Palavras que ninguém lê, sente, compadece ou compreende. E a revolta, ah!, a revolta, senhores... Por fim, o porvir - inutilidades, nada mais que inutilidades...
Imaginai, senhores, o amor personalizado de vossas vidas. A causa primeva. O ideal, o positivamente belo. Imaginai o propulsor de vossos atos, anseios e vontades. Conseguis imaginar? Pois bem. Vós ou quem mais for, seja qualquer um, ainda que por apenas um raro e irrepetível ensejo, qualquer um que houver de lidar com as eternas questões (o quê?, como?, por quê?)... Por fim chegáreis a uma resposta. E tal resposta, senhores, a única solução que haveríeis de encontrar - o insólito e grandioso sentido que faz o mundo, senhores, o vosso mundo, vede bem!, o ineditismo que faz girar as triviais engrenagens de vosso sistema -, por um acaso, feito mágica inefável e inesperada, num simples estalar de dedos, deixasse de existir. Fosse-vos negada, sem mais nem mais. O que fazer, senhores? Diante de tamanho desespero e tamanha cólera, insisto, o que fazer! Para onde ir? Onde!... Porque, havei de convir, para algum lugar todos, absolutamente todos devem ir - de fato!... E se não houver mais semelhante lugar, para quê viver?, para quê viver?... Aos diabos!, mas que chuva é esta, senhores?
Sob meu próprio olhar perscrutador, perante meu irrevogável estado de inquisição, vejo-me condenado a semelhante sentença: quem há, pois, de se lembrar de mim? Aos escombros, a isto pertence meu destino! Sou incapaz de ostentar a altivez, a arrogância - a petulância de quem desafia com desdém quaisquer precipícios... (O fim dos tempos.) Não, senhores, este não sou eu. A mim, tão somente o desespero. E onde, imploro-vos, onde estará aquela senhorinha de outrora? Longe de mim, ausente de meus direitos. Mais uma noite, mais uma noite!... Até quando, senhores, até quando haverei de suportar todo este fardo?
Mas, não obstante, deparo-me também descrente de todas as ilusões. Trôpego, confuso, é bem verdade. Que seja!... (Buscai a indiferença, senhores, buscai-a acima de tudo.) Pérfida liberdade, pungente e visceral paixão - eu amaldiçoo a todas! Vil consciência, malquista vontade. O diabo!, o diabo que lhes carregue - pois o amanhã, senhores, o amanhã pertence a ele e tão somente a ele... Mais ninguém, mais ninguém!
  - Um olhar, vilã de meu coração, eu não desejara nada além de um olhar teu, gélida e intrépida senhorinha. Vê-me e salvar-me-ei! De toda a imundície, de todo o populacho, de toda a compaixão. (Ainda que seja tarde, muito tarde...)

2 comentários:

Natália disse...

Divino seus textos ;)
Tudo de melhor amigo.

beijos ;*

£an disse...

"E é tão unicamente sob nossa forma mais vil que conseguimos revelar a sinceridade e a complexidade de nossos interesses, nossa essência."
Essa frase foi simplesmente genial. Engraçado que há poucos dias eu comentava com um amigo justamente isso: despidos daquilo que temos de bom, dos nossos "bons" valores, de nossas "boas" morais, aí está quem somos, de fato. A chuva de fato não lava a lama, mas as próprias reflexões não o fariam? Que a indiferença salve a todos nós!