Ele não era atraente afinal, porém despertava a curiosidade. Seus olhos um tanto quanto irônicos - e ao mesmo tempo perspicazes - indicavam indagações que remetiam ao desconhecimento e a unicidade. No fundo ele cultivava certa melancolia, apesar dos sorrisos constantes e das sonoras gargalhadas. Tal tristeza era percebida apenas em suas palavras escritas e lamentadas; uma lágrima de palhaço escorria em seu interior. Seus ângulos retos denotavam tão somente disciplina e dedicação: exercícios, dieta; uma rotina que não o orientava a mais nenhum lugar senão o autocontrole. Ele não fazia cálculos ou planos, tampouco possuía a pretensão de viver décadas ou semanas; decerto que a necessidade de um insólito guia para refrear toda a inefável insanidade presente em seus sonhos era exaurida através de pesos, velocidade e calorias racionadas. Mas ele não era belo - e dizia a si mesmo não se importar com tal infortúnio.
O que o tornava alguém digno de um conto, senhores? Eu lhes respondo: a altivez, orgulho e opinião próprios, e o completo despojo das comparações. Ele tecia pensamentos, discursos e anedotas que o faziam ostentar a raridade, ainda que por vezes tais ultrapassassem os limites da compreensão alheia. Insuportava mesmices, mas, não obstante, aceitava-as. Sabia de seu lugar junto à solitária multidão de ilustres anônimos, apesar da falta de tom. Não usava sapatos, não vestia calças, ignorava formalidades. E amava a humanidade - mais do que amor, havia aí um interesse intrínseco que o movia em busca de sentido, de complexas explicações para o mais simplório dos atos desse assaz intrigante chamado comportamento. Entendia-a pelas metades, no entanto parcas eram as suas decepções. Era capaz de encontrar motivos para os feitos mais cruéis... “Somos todos egocêntricos, repletos de frustrações, eternamente responsáveis por compreender e aceitar o egoísmo de todos ao redor - sem exceção!”. Com estas palavras ele se apresentara a ela naquela tarde. Não havia a visto anteriormente uma única vez, sequer um “oi” ou algo semelhante - e aí, justamente aí, residia toda a curiosidade que ele conseguia provocar.
Ela parecia uma daquelas bonecas recém-lançadas no mercado de brinquedos, a fim de ser consumidas avidamente por crianças que já sabem há um tempo do poder e do vislumbre do luxo - a beleza, principalmente, e o luxo. Havia até a possibilidade remota de que ela não piscasse, respirasse, sentisse fome ou sede - e outras dessas coisas comuns a tudo de que se trata por humano. Uma estátua sobre um pedestal; não de mármore, mas de cera. Ao primeiro olhar, deixava-se claro a sua prima condição de melhores tratos - uma ode à beleza, e todos os cuidados possíveis e inimagináveis que tal requer para si. Luzes, futilidades, adjetivos, era tão somente disso o que ela precisava. Um verdadeiro amor - e todos os seus naturais sacrifícios?... Ah, isso era tão pouco frente aos seus desejos! Ela não nascera para se trancafiar em um único coração, senhores.
Tudo levava a crer que aquela seria apenas mais uma tarde de sábado em um shopping center para ela - não que desejasse mais do que isso em tal momento. No entanto, a surpresa que o mais fagueiro dos instrumentos de deus, o acaso, reservava-lhe jamais visitara os seus anseios até então. Afinal o que mais ela queria encontrar ali? Havia as lojas, as compras, os flertes e os risos. E ela era tão somente sorrisos... Uma autenticidade inocente estampada naqueles cantos de lábios suaves que eram capazes de perverter a maior das indiferenças. Uma criança, uma Alice, uma princesa em seu pequeno castelo saturado de súditos e pretendentes. Tratava-se de egoísmo, sim, porém uma reação natural de alguém que possuía em tamanha abundância a maior e mais cobiçada das virtudes - a formosura. Ela era o coquetismo em linhas delicadas, cores, olores e tênues gestos. Uma doçura, senhores!... O mais sublime dos manjares que os olhares possam absorver - isto, e tão somente isto, era o que ela era.
Uma tarde inteira se passara - rostos, imagens, sacolas, inúmeras delas..., paladares. Uma leveza sem aparentes motivos, a condição primordial de se usufruir trivialidades. Uma vida de plástico, maquiagens e ar refrigerado. Assim se faziam as tardes de sábado de Joana, a menina-boneca. Galharda, garrida, havias as delgadas linhas curvilíneas e havia os seus olhos hipnóticos. A inefável e inebriante sensualidade - a beleza que torturava e cegava. E sempre, sempre exibindo um sorriso e uma indagação; uma intriga, uma vontade irrequieta de encontrar algo que jamais conseguira concretizar em pensamentos, um quê de muito próximo do fantasioso...
Ela acabara de sair de tal shopping center. Despedira-se de algumas companhias, dirigira-se à fila de táxis estacionados. Era unicamente embrulhos - mal via os próprios passos! E de súbito, algo vencera a inércia de sua rotina, como o apito inicial de uma partida - num porvir, sem mais nem mais, tudo começa e nada remanescente de passados recentes se ramifica na memória. Um cronômetro posto a trabalhar, o disparo de um revólver, o nascimento de uma concepção - a paixão, senhores, a paixão!
Nos segundos imediatos após o choque, ela jurava ter se colidido com um muro ou um poste - algo fixo e rigoroso demais para ser transposto. Era Paulo; caminhava os seus passos distintos em seus trajes completamente soltos de tendências sociais e culturais. As compras, os presentes se espalharam pela calçada. E o contraste de imediato entre ambos, que dispensava apresentações e explicações - dois mundos, duas filosofias, duas realidades enfim -, paralisou-lhe os reflexos: Joana se transformara; dera-se conta de seus excessos, suas imperfeições. Logo em seguida, corara-se. E as palavras de Paulo, enfim, foram ditas.
- Não se preocupe, bonita! Eu também possuo, apesar de que as aparências teimam em contradizer tal verdade, igualmente carrego comigo uma infinidade de atos e hábitos individualistas o suficiente para receberem a alcunha de descartáveis. E é por isso que somos humanos, e que vivemos... E saiba também que amar-lhe-ei ao longo de todo o tempo que gastarei empilhando tamanhos e curiosos pertences!...
Tratava-se da peculiaridade de Paulo, comovente, intrigante; não haveria necessidades maiores que semelhantes palavras, tal figura, tal ensejo para que Joana lhe dedicasse uma eternidade de suposições - um torpor que queimava e cativava os seus sentidos. Um dia, uma tarde tão somente; um segundo, um olhar, dizeres e diversidades - pronto!, suas indagações e sorrisos já se nutriam daquela inesperada presença. Não desejava mais ir embora, suas sensações finalmente se vertiam em uma única direção. Um toque, um toque apenas e nada mais, e aquela flor nomeada ardência desabrochar-se-ia.
Não houve mais palavra. Talvez um “até mais”, quiçá um “fica bem!”; não importa. Paulo ia e vinha, essa era a sua essência - um passado, rugas e mágoas infindas o lapidaram dessa forma. Contos de antanho, desinteressantes... Na verdade, houve sim um diálogo entre os dois; não obstante o destino já agira por si - como onda do mar que não se impede, feito o tempo que não para. Usual, indesejável por vezes, esse portentoso galhofeiro já havia decidido por aquelas duas vidas. E a estreiteza, e a ansiedade, as noites incompletas e as horas incessantes, e tudo aquilo que os amantes sentem pungindo-lhes a identidade, independente de objetos ou motivos, já lhe invadiam a alma - ela clamava por notórias recordações; ele desejava apenas entrar para a história.
O diálogo, senhores? Ah, este eu deixo para depois; amanhã talvez, um dia ou dois anos até. Mas, não obstante, creio que suas insinuações bastam para prever o que realmente houve naquele fim de tarde para nossas singulares criaturas, ambos à espera das surpresas reservadas pelo ocaso - triste ou não, uma questão de opinião. Não é bem verdade?