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sexta-feira, 28 de maio de 2010

Olhos Soturnos

Carros na rua. Frio. Noite afora.
Casais sorrateiramente espalhados pelos cantos.
O fim de uma jornada de trabalho. Quarenta e oito horas sem ocupações - sem igualmente o quê fazer...
Café. Computador. Chá. Televisão. Livros.
Um inefável sentimento de incapacidade.
A casa vazia - alguns latidos ao redor da suposta vizinhança. Outros carros em movimento.
Música para assassinar o silêncio.
A morte dos sonhos - a desilusão da esperança. Risos sem ensejos; talvez a desgraça, o infortúnio, quiçá as ausências por tanto tempo presenciadas. Um protesto. Uma revolta. Demônios internos.
Estagnação. Inércia. Desejos intangíveis, vontades irreparáveis. A evasão do tempo. Rugas, calos, cabelos grisalhos; outra morte - a da juventude.
Horas, minutos - ponteiros e números digitais. Suores, impulsos incontidos. A lascívia.
O autoconsumo. A humilhação. O fracasso. A resignação.
Um semi-amanhecer.
Insônia...

domingo, 23 de maio de 2010

Tarde De Sábado

Ele não era atraente afinal, porém despertava a curiosidade. Seus olhos um tanto quanto irônicos - e ao mesmo tempo perspicazes - indicavam indagações que remetiam ao desconhecimento e a unicidade. No fundo ele cultivava certa melancolia, apesar dos sorrisos constantes e das sonoras gargalhadas. Tal tristeza era percebida apenas em suas palavras escritas e lamentadas; uma lágrima de palhaço escorria em seu interior. Seus ângulos retos denotavam tão somente disciplina e dedicação: exercícios, dieta; uma rotina que não o orientava a mais nenhum lugar senão o autocontrole. Ele não fazia cálculos ou planos, tampouco possuía a pretensão de viver décadas ou semanas; decerto que a necessidade de um insólito guia para refrear toda a inefável insanidade presente em seus sonhos era exaurida através de pesos, velocidade e calorias racionadas. Mas ele não era belo - e dizia a si mesmo não se importar com tal infortúnio.
O que o tornava alguém digno de um conto, senhores? Eu lhes respondo: a altivez, orgulho e opinião próprios, e o completo despojo das comparações. Ele tecia pensamentos, discursos e anedotas que o faziam ostentar a raridade, ainda que por vezes tais ultrapassassem os limites da compreensão alheia. Insuportava mesmices, mas, não obstante, aceitava-as. Sabia de seu lugar junto à solitária multidão de ilustres anônimos, apesar da falta de tom. Não usava sapatos, não vestia calças, ignorava formalidades. E amava a humanidade - mais do que amor, havia aí um interesse intrínseco que o movia em busca de sentido, de complexas explicações para o mais simplório dos atos desse assaz intrigante chamado comportamento. Entendia-a pelas metades, no entanto parcas eram as suas decepções. Era capaz de encontrar motivos para os feitos mais cruéis... “Somos todos egocêntricos, repletos de frustrações, eternamente responsáveis por compreender e aceitar o egoísmo de todos ao redor - sem exceção!”. Com estas palavras ele se apresentara a ela naquela tarde. Não havia a visto anteriormente uma única vez, sequer um “oi” ou algo semelhante - e aí, justamente aí, residia toda a curiosidade que ele conseguia provocar.
Ela parecia uma daquelas bonecas recém-lançadas no mercado de brinquedos, a fim de ser consumidas avidamente por crianças que já sabem há um tempo do poder e do vislumbre do luxo - a beleza, principalmente, e o luxo. Havia até a possibilidade remota de que ela não piscasse, respirasse, sentisse fome ou sede - e outras dessas coisas comuns a tudo de que se trata por humano. Uma estátua sobre um pedestal; não de mármore, mas de cera. Ao primeiro olhar, deixava-se claro a sua prima condição de melhores tratos - uma ode à beleza, e todos os cuidados possíveis e inimagináveis que tal requer para si. Luzes, futilidades, adjetivos, era tão somente disso o que ela precisava. Um verdadeiro amor - e todos os seus naturais sacrifícios?... Ah, isso era tão pouco frente aos seus desejos! Ela não nascera para se trancafiar em um único coração, senhores.
Tudo levava a crer que aquela seria apenas mais uma tarde de sábado em um shopping center para ela - não que desejasse mais do que isso em tal momento. No entanto, a surpresa que o mais fagueiro dos instrumentos de deus, o acaso, reservava-lhe jamais visitara os seus anseios até então. Afinal o que mais ela queria encontrar ali? Havia as lojas, as compras, os flertes e os risos. E ela era tão somente sorrisos... Uma autenticidade inocente estampada naqueles cantos de lábios suaves que eram capazes de perverter a maior das indiferenças. Uma criança, uma Alice, uma princesa em seu pequeno castelo saturado de súditos e pretendentes. Tratava-se de egoísmo, sim, porém uma reação natural de alguém que possuía em tamanha abundância a maior e mais cobiçada das virtudes - a formosura. Ela era o coquetismo em linhas delicadas, cores, olores e tênues gestos. Uma doçura, senhores!... O mais sublime dos manjares que os olhares possam absorver - isto, e tão somente isto, era o que ela era.
Uma tarde inteira se passara - rostos, imagens, sacolas, inúmeras delas..., paladares. Uma leveza sem aparentes motivos, a condição primordial de se usufruir trivialidades. Uma vida de plástico, maquiagens e ar refrigerado. Assim se faziam as tardes de sábado de Joana, a menina-boneca. Galharda, garrida, havias as delgadas linhas curvilíneas e havia os seus olhos hipnóticos. A inefável e inebriante sensualidade - a beleza que torturava e cegava. E sempre, sempre exibindo um sorriso e uma indagação; uma intriga, uma vontade irrequieta de encontrar algo que jamais conseguira concretizar em pensamentos, um quê de muito próximo do fantasioso...
Ela acabara de sair de tal shopping center. Despedira-se de algumas companhias, dirigira-se à fila de táxis estacionados. Era unicamente embrulhos - mal via os próprios passos! E de súbito, algo vencera a inércia de sua rotina, como o apito inicial de uma partida - num porvir, sem mais nem mais, tudo começa e nada remanescente de passados recentes se ramifica na memória. Um cronômetro posto a trabalhar, o disparo de um revólver, o nascimento de uma concepção - a paixão, senhores, a paixão!
Nos segundos imediatos após o choque, ela jurava ter se colidido com um muro ou um poste - algo fixo e rigoroso demais para ser transposto. Era Paulo; caminhava os seus passos distintos em seus trajes completamente soltos de tendências sociais e culturais. As compras, os presentes se espalharam pela calçada. E o contraste de imediato entre ambos, que dispensava apresentações e explicações - dois mundos, duas filosofias, duas realidades enfim -, paralisou-lhe os reflexos: Joana se transformara; dera-se conta de seus excessos, suas imperfeições. Logo em seguida, corara-se. E as palavras de Paulo, enfim, foram ditas.
- Não se preocupe, bonita! Eu também possuo, apesar de que as aparências teimam em contradizer tal verdade, igualmente carrego comigo uma infinidade de atos e hábitos individualistas o suficiente para receberem a alcunha de descartáveis. E é por isso que somos humanos, e que vivemos... E saiba também que amar-lhe-ei ao longo de todo o tempo que gastarei empilhando tamanhos e curiosos pertences!...
Tratava-se da peculiaridade de Paulo, comovente, intrigante; não haveria necessidades maiores que semelhantes palavras, tal figura, tal ensejo para que Joana lhe dedicasse uma eternidade de suposições - um torpor que queimava e cativava os seus sentidos. Um dia, uma tarde tão somente; um segundo, um olhar, dizeres e diversidades - pronto!, suas indagações e sorrisos já se nutriam daquela inesperada presença. Não desejava mais ir embora, suas sensações finalmente se vertiam em uma única direção. Um toque, um toque apenas e nada mais, e aquela flor nomeada ardência desabrochar-se-ia.
Não houve mais palavra. Talvez um “até mais”, quiçá um “fica bem!”; não importa. Paulo ia e vinha, essa era a sua essência - um passado, rugas e mágoas infindas o lapidaram dessa forma. Contos de antanho, desinteressantes... Na verdade, houve sim um diálogo entre os dois; não obstante o destino já agira por si - como onda do mar que não se impede, feito o tempo que não para. Usual, indesejável por vezes, esse portentoso galhofeiro já havia decidido por aquelas duas vidas. E a estreiteza, e a ansiedade, as noites incompletas e as horas incessantes, e tudo aquilo que os amantes sentem pungindo-lhes a identidade, independente de objetos ou motivos, já lhe invadiam a alma - ela clamava por notórias recordações; ele desejava apenas entrar para a história.
O diálogo, senhores? Ah, este eu deixo para depois; amanhã talvez, um dia ou dois anos até. Mas, não obstante, creio que suas insinuações bastam para prever o que realmente houve naquele fim de tarde para nossas singulares criaturas, ambos à espera das surpresas reservadas pelo ocaso - triste ou não, uma questão de opinião. Não é bem verdade?

domingo, 2 de maio de 2010

Um Alvinegro Dia De Domingo

Ah, como começara lastimoso esse dia... O diabo, o diabo sabe de cor do que estou falando! E ao diabo com tudo isso - dietas, relações, dúvidas, solidões, improbabilidades, pobrezas, trivialidades. Uma maldita contusão na perna, fruto do futebol nosso de cada sábado, impossibilitava-me de realizar minha intensa corrida dominical; um treino leve pela tardinha era o máximo que conseguiria fazer. Não obstante, faltava-me o ânimo. As minhas normalidades e a contínua falta de soluções me sufocavam numa condição acima do habitual. Paciência!, pois o dia ainda se mostrava tão precoce em sua existência... Algo poderia acontecer - afinal de contas, essa é a idéia da esperança, senhores!
E esse algo poderia mesmo concretizar-se, e em forma de paixão clubística - por que não?! Outra vez - e tais vezes já se fazem por incontáveis, é bem verdade! - o futebol salvar-me-ia o domingo. Afinal o meu Galo! estava na final do campeonato - o que mais eu poderia desejar?... E na medida em que o tempo se esvaía, todas as minhas querelas também se desfaziam, tornando-se estas tão somente desnecessidades. Não faltava mais tanto tempo para o início do jogo, e nem eu estava mais com tanta fome assim , eh eh eh!
Uma trégua, uma trégua de toda a miséria - era tão somente isso de que eu precisava. Um pequeno risco para se lidar, ínfimo perante a vontade que persistia em mim; em mim e em outros inúmeros, conhecidos ou não, que compadecem de tal paixão - a única realmente imune a toda e qualquer manifestação de ciúmes e disputas. Neste singular caso, quanto mais efusivos amantes existirem, melhor!... Não somos rivais, não somos mesmo! Aqui há algo mais próximo de uma irmandade, creio eu. E, senhores, trata-se da mais pura concretidão esta minha seguinte afirmação: somos muitos, somos numerosos, somos igualmente incontáveis, constantes, fiéis e inexplicáveis! Controversos por vezes, impulsivos, furiosos, ofensivos. Somos sinistros!... Mas, não obstante, compreensivos perante os iguais. Somos uma nação; e no auge inimaginável do nosso patriotismo, exibimos tão somente uma identidade: o amor, a paixão, a idolatria e a insânia.
Quanto ao jogo, senhores, digo que, numa palavra, não houve jogo - mas um espetáculo, uma apoteose. E por mais que os milhares lá fisicamente presentes bradassem toda essa nossa identidade, algo inusitado de fato ocorrera. Os gritos se tratavam de unicamente reações impensadas, pois por dentro emudecíamos diante da grandiosidade da tal momento. Uma contemplação impossível de ser vertida em palavras - e isso eu sei, senhores, mesmo de longe, em minha casa, de uma distância concreta e considerável, que falo por mim e por toda esta minha nação. Fora inexplicável...
Lágrimas. Sim, lágrimas, senhores, tão somente lágrimas conseguiam expressar o inefável sentimento daquele momento. Um desporto, uma decisão, jogadores, funcionários e outras gentes de suposta maior importância - e torcedores e seguidores. Torcedores assim como eu. Torcedores que, sem qualquer razão plausível e justificável, simplesmente vivem as suas vidas junto a esse mineiro clube de alvinegras cores. E hoje, hoje, acompanhando tudo pela TV - porque nesses dias de agora eu cá não me encontro com tolerância o suficiente para suportar opiniões de menosprezo e subestimação de alguns, apesar das iguais condições uniformizadas -, eu pude pela primeira vez comprovar tamanha sincronia de satisfação, comovência e compromisso: todos, indiferente de propósitos, funções, razões sociais, absolutamente todos vibravam em uníssono. Senhores, eu pude mesmo ver, e afirmo tão cheio de mim mesmo - eu vi unicamente verdades e realizações dentro daquele estádio/ palco. Um ídolo, um craque, um comandante e milhares de não menos importantes outros indivíduos exibindo almas e corações em glória. E o porvir, a consagração!... Não, eu não possuía sequer outra ação para demonstrar tudo isso senão a de verter tais lágrimas. Lágrimas, ainda que dignificadas. Humildes e altivas, lágrimas. Um mundo alvinegro, o meu mundo alvinegro sendo coroado.
Ao término de tal espetáculo, fui-me realizar a tarefa dominical ainda pendente. Correr por aí; queimar calorias indevidamente adquiridas no dia anterior, cumprir outra rotineira semana de exercícios - não concretizar o mínimo de pensamentos possível. Enquanto corria, na beira de uma estrada iluminada apenas por faróis automotivos, aos poucos conseguia retornar-me ao estado normal de existência. A imensa felicidade instantânea se dissipara - junto a ela, igualmente as decepções que carrego comigo. Em seguida, a minha tão esperada leveza de ser. Minha perna nem doía mais! E as lágrimas, ah, estas se resguardaram para futuros ensejos - dos quais não espero tamanha expansividade como a de hoje. E hoje, senhores, hoje eu não preciso mais tanto assim do amanhã... Bastou-me a plenitude da vitória. Nada mais importa - ah, como explicar-me esse amor alvinegro! - nesse dia de domingo.