Powered By Blogger

terça-feira, 29 de junho de 2010

Apenas Uma Noite

Já anoitecera. O clima era seco; não obstante, caso indícios sensoriais, percepções emotivas, tragédias sentimentais, pesares, estreitezas e lamentações pudessem ser exteriorizadas, concretizadas, tal ato anunciaria um dilúvio sob pluviosidade naquela hora. Estaríamos, por dizer, mais bem acomodados e situados em semelhante ambiente - quem permaneceria na casa? Ódio, mágoa ou indiferença? E o dia seguinte?...
Ela amontoava parte das roupas em um lençol; tecia uma grande trouxa que abrangia tudo aquilo que conseguira recolher. A maior delas. Olhava para os porta-retratos espalhados por cômodas e estantes enquanto decidia o próximo passo - quebrá-los, rasgá-los, guardá-los, chorá-los. Há uma hora estava com fome. Agora sentia náuseas e enjôos. A vista se turvava. Os dentes, cerrados. Tremia. Atemorizara-se. Mas a postura era a de um Napoleão. Ajeitava-lhe os cabelos, mirava-se no espelho. Não abria mão da altivez. “Ótimo. Não me fiz em prantos. Estou bem.” Porém sabia que não suportaria mais do que um ou cinco minutos.
No quintal, o silêncio que prevê o fim. Sequer o vento ou as sombras ousavam sussurrar atenções. Não passavam das 20 horas.
Ele acende o seu terceiro cigarro; espera do lado de fora. Apesar da camiseta, fazia frio. Não havia estrelas no céu, não havia cachorros na rua. Ali, encostado no portão eletrônico, incapaz de produzir palavra, tão somente aguardava. O tempo paralisara - meses, anos, histórias, planos. Olha para a esquina vazia. Pensa em cortar o cabelo. Repara em quanto mato surgira no lote ao lado. Decide parar de beber. Ouve a voz com a qual sonhara tantas e tantas vezes - e por tantas outras acordara ao longo de manhãs e madrugadas - sentenciar um canto triste: “Só falta o meu casaco... Estou pronta.” Tratava-se mesmo do fim.
Engraçado como tememos a morte; sabemos de sua certeza, de sua obrigatoriedade; para tudo se reserva um desfecho - ainda assim, tememo-lo. Curioso como certos desejos causam arrependimento quando de fato estes se mostram por realizados. Talvez seja apenas angústia, ansiedade. Quiçá, a valorização irracional do distante, do intangível, do amanhã; a idealização, sonhos, quimeras, nada mais. O que acontece é que vagamos do passado ao futuro, confiando-lhes a única felicidade. E o presente se revela tortuoso, incompleto. A verdade é que ele não dormiria aquela noite. Ela estava pronta. Para sempre.
Um carro havia se aproximado - era o táxi. Feito hábito, ela só conseguia carregar a pequena valise contendo seus perfumes, cremes etc. Os demais pertences, todos eles, estavam no chão da sala. Ela não sabia como chamá-lo - as malas!, as malas! “Isso precisa acontecer?...” Ele fora buscar tais pertences. Caminhava vagarosamente, evitava respirações - jogara o cigarro fora. Cada passo, cada olhar, os pensamentos reflexos; obstáculos indesejáveis. Ela estava bonita. Grave, rígida. Austera, soberba. Ele se sentia menor; a casa seguiria sob seu domínio - não obstante, menor. Em pedaços. Acende outro cigarro.
Não houve palavra, tão somente pesares. Tudo estava ali, exposto a céu aberto. Outrora, infinito; agora, dois zeros. Explicações, motivos, desculpas, perdões - para quê? Havia chegado o fim. Não se falavam, evitavam rebaixar-se; gritos, humilhações. Amavam-se. Conquanto não soubessem do que se tratasse, amavam-se. Engolidos pela indefinição, fantasias, expectativas, frustrações - amar-se-iam ao longo de suas infelizes existências. Arrepender-se-iam, trocariam injúrias no silêncio; ainda assim, amar-se-iam. Na distância, na solidão, no fracasso... Amar-se-iam e nada mais.
O curioso e o improvável iam e vinham em suas impensadas decisões. Atos desprovidos de sentidos, vontades. Já era tarde afinal. Ela queria sair logo dali - derrubar-se em lágrimas obscuras. Sob a penumbra do orgulho e da dignidade escondia seus sentimentos. Sem espaço para admissões, redenções. Íntegra, gélida. Via-o com a cabeça baixa, olhar ao chão. Reverência, temor - era tudo o que ela esperava daquele momento. A separação. No fundo ela sabia; duas metades de um universo inconveniente. Sem tempo para recomeços. Decidira, por fim, queimar todas as fotos.
O que ela não previa era a própria dependência. Ele já havia virado as costas, o portão finalmente se fechara. O táxi sequer havia desligado o motor - um pequeno pranto sufocado pela soberba. Mas, não obstante, as memórias dilacerariam suas pretensões. Encontrar-se-ia perdida daqui a segundos. No entanto, uma escolha, uma decisão; um caminho ausente de retornos. Indiferença era o que desejava naquela hora - indiferença era o que mais lhe faltava dentro daquele táxi.
Ele havia consumido seu último cigarro. Procurava algo sem saber, ligava a TV, olhava-se no espelho. Um rosto - desconhecia-se. Resolvera sair... Faltava decidir para onde. Para quê? Por quê? Escapava-lhe as forças, a razão. Eram 20 horas e 2 minutos. Passaria a noite inteira naquela casa, diante do espelho, no sofá ou no chão - não iria a lugar nenhum. Disso ele sabia. Sem promessas, sonhos e impressões. No mais, incertezas. Nascia uma revolta tardia. O amor e a paixão têm dessas. Sentia frio. Desistira da dignidade.
“Um cigarro, minha vida por um cigarro... Senhora, onde está que não consegue ouvir minha dor? Ao diabo, então, ao diabo com toda a sua razão!... Saia para sempre de meu subsolo!” - no fundo, admitia; aquilo não se transformaria em verdade. Ele só queria saber o porquê...
Já ela, ela dormira na casa de sua mãe. Um silêncio, uma vergonha. 28 anos. Sentia-se velha, torpe. Desesperara-se pela ausência das lágrimas. Havia medo em sua alma. Tratava-se do amor que ela jamais soubera decifrar em si mesma. “Apenas uma noite.” - dizia em seus pensares. “Uma noite tão somente; tanto tempo perdido.” Tantos equívocos, essa sim, era a sua maior verdade.
Apenas uma noite. Fria, insólita, vil, insone - apenas uma noite. Naquela noite, uma descoberta; a eternidade representada em atos. A incerteza do tempo. Um conto inacabado.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Flores Amarelas

Desconheço a existência de deus, do infinito. Foi-me tolhida, há tempos, a última esperança. Sonhos? Estes, sob minha própria força e vontade, vorazmente banidos. Futuro? Irrelevante, desconsiderável. Tempos passados, tenho-os como um guia de aprendizado; um dicionário, uma gramática, um livro de regras e nada mais. Sou este momento, meus princípios estão aqui. Estas palavras, a leve brisa sobre os cabelos, o muro de concreto, um número à minha frente - cento e sessenta. Uma vela, um cemitério. Pai e irmão jazidos no mesmo solo.
Não creio na eternidade, na continuidade da alma. Nossa única e definitiva posse - o corpo. A grande e fascinante dádiva: o tempo. E os feitos, as ações, ah!, tais cabem tão somente a nós e mais ninguém. Eu sou os meus atos, pensamentos e percepções. Ostento a estreiteza quase ímpia da permanente recusa de me curvar os joelhos perante toda e qualquer condição. Julgo sentidos e consciência como a minha bandeira, minha nação. Troco a minha vida por meus dizeres, certezas, minha essência. E assim, afirmo que, numa palavra, não mais preciso de céus e terras prometidas. Os meus dias são limitados; não há problema algum em tal verdade. Meus medos, derrotados, ainda que intrínsecos, reais. E a humanidade - a esta dedico o meu mais sincero amor.
Mas, não obstante, hoje resolvi brincar de construir monólogos intangíveis. Meu pai, que reside há cerca de três anos nesse número, o cento e sessenta, há de fazer as vezes do fantasioso nesta hora. Restos orgânicos, consumidos, misturados à terra, é o que encontro sob meus pés. Sequer uma lápide, sequer uma lápide há aqui! - apenas esse número. E mirando tal cenário, tal afirmação, compreendo, admito e lamento o peso da realidade da vida ordinária. Trata-se, de fato, de algo frio por demais, desalentador - um quê de frustrações e inquietudes -, uma força inefavelmente superior a toda nossa capacidade de lutar. E aí nasce um grande temor - a revolta. A angústia, a atribulação, fracassos, restrições, iniquidades, prantos; tudo vertendo-se em rebeldia e protesto. O mau agouro do caos e do desespero; o autoconsumo. A ausência de luz. A perdição. Faz-se necessário um caminho; é aí que se justifica o sentimento religioso. E por isso, unicamente por semelhante motivo, é que concedo as minhas gratidões a este senhor de iludir, o criador da fé - ainda que tal, para mim, esfacelara-se por completo.
Portanto, aqui, sentado sob pedras, já de costas àquele número, volto aos meus sonhos de infante. “Pai, sua luta continua em mim; talvez perante maiores estranhezas, quiçá sob diferentes complexidades, ambientes. Seus passos não foram esquecidos. Suas palavras, meticulosamente reproduzidas, divulgadas - não por mim; o meu orgulho me impede de fazer algo que não seja nomeado de próprio, único. As lembranças, ainda que permanecidas tão somente num âmbito familiar, perduram. E os atos e as reflexões, estas lhe concedem o título de eterno - a verdadeira, a concreta longevidade. E os deuses e os anjos, que seguem sem sequer saber de nós, não são mais necessários. Por quê? Pelo seu exemplo, pela sua história; pelo meu presente, pelo tempo que ainda me resta - e por nossa arte de amar.”
Se eu conseguisse mesmo brincar de sonhar, de voar e conversar com o improvável, dir-lhe-ia, numa palavra, ainda que tardia e por vezes repleta de negligência: - Obrigado. Trata-se disso; a força que me criara, a inexplicabilidade de minha existência, o sentido e o propósito, o princípio se faz naquilo que você foi. E o fim?... O fim, eu haverei de criá-lo. Simples, pleno, possível.
x
Momento ínfimo e fugaz de devaneios de minha parte. Eu cá já me dou de encontro à porta de saída. Eu, homem, egoísta, saturado em vaidades, vivendo unicamente concretidões. Mas, não obstante, uma verdade inesperada: naquela terra revestida de ossos e carnes, assim, sem mais nem mais, nascem pequenas flores amarelas, despojadas de planejamentos e previsibilidades - a cor da sabedoria, a cor favorita...