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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Jingle Hells Bells (crônicas de um miserável)

Senhores, ah!, meus estimados senhores, que bela e suntuosa época é esta que se aproxima de forma inevitável e irrevogável... O mês de dezembro. Ah!, afinal é natal... (Digo-vos, pois - humilde, porém coberto de franquezas -, onde estão de fato os motivos de alegria e júbilo?) Aos diabos!... Perdão, senhores, perdão... Mas se trata de uma irônica incoerência. Meu pequeno irmão tão somente sabe inventar extravagantes pedidos. "Desejo de ti, oh!, infeliz primogênito, uma bicicleta motorizada. Sim!, não!, melhor dizendo... Algo que voe, isso!, algo que voe..." (Uma janela, talvez?...) E meus pais, o que relatar sobre eles? Imagens e atuações irritantemente acima de nossos íntimos laços familiares. Possuíamos e executávamos todas as condutas natalinas. Faltava-nos o sentimento. (O bom desse quadro é que eu sempre pude embriagar-me sem remorsos muitos... Ora!, coisa ridícula, eu já os tive um dia afinal?)
Mas, não obstante, admitir é preciso. Gosto dessa época. Os enfeites, os planos; são desnecessários os esforços, tornamo-nos melhores apenas por sorrir e receber cumprimentos. "Feliz natal!, feliz natal!" (Quem de vós sabe mesmo o que é felicidade? Como diz aquela música sobre saúdes, dinheiros, bolsos e vendas... Pois bem!) Ah!, mas eu acredito. É bem verdade, senhores, é bem verdade. No entanto, a obrigatoriedade de minhas desconfianças me exige semelhante comportamento... Não vos enganeis, comungo igualmente de ceias e presentes, e saio de casa gargalhando feito hiena. Agradam-me profundamente tais rasas promessas. Ainda que tão somente por um instante, nada mais que um instante, senhores...
"Quá-quá-quá!", faria o meu imaginário Noel, ostentando doses e charutos, galhofas e quiproquós. "Uma perversidade!", dizeis vós... Eu sei. Mas, não obstante, sinceridades. Todos anseiam por festas e feriados; as crianças, pequenas insolentezinhas, maldizem os sofridos vencimentos paternos - num sentido amplo e generalizado, óbvio, senhores... Recolhei as vossas pedras, pois! E aos poucos que sobram, bem, a esses poucos que me restam apenas conforto nas palavras - onde estão? Abandona-me a acuidade visual. Descascam-me as horas. Ora!, não importa - é tempo de gastos, aquisições e doações... Sangue de Cristo, senhores!... Sangue de Cristo sobrevive! (Alinhai-vos à grande fila, recebei-vos o abraço universal, eh eh eh!)
Por deus!, estou perdendo a última linha de minha sensatez... Senhores, senhores, trata-se mesmo de algo indecoroso, a miséria. Mas o que posso fazer, respondei, o que posso de fato fazer? Comemoremos, comemoremos!...
Pois bem. Hei de tecer compras, sorrisos e saudações. A ebriedade prometida. Reunião. (Uma família que desempenha grandezas tão somente em épocas tais...) As crianças, demoniozinhos consumidores que já cercam todos os arredores... Ah!, senhores, se tais criaturas não se virem satisfeitas, ah!... E os banquetes? Recuso-me diante de quaisquer moralidades. Ora, pois, por mil e um diabos mancos!, não quero saber de justiças, mas apenas dos sentidos... Não há mais nada a fazer. (Embriaguez e uma bela coleção de fracassos...)
Às tantas horas, quando as surpresas todas já se desfizeram perante as previsões - dessa vez, coisa bem-vinda, dessa vez não fora eu o encarregado de portar aquelas tradicionais rubras vestes -, quando se bebia e se comia até haver-se perdido as tolerâncias, e as pestezinhas exibiam as suas fortunas conquistadas, improvável, surgira-me um alento. Atrasados visitantes... Uma prima, senhores, um prima com a qual jamais travara conhecimento até então. Desperdício! Numa palavra, paralisaram-me os paladares - ela era mesmo uma senhorinha e tanto!...
("Colóquios de mesa e colóquios de amor; uns como os outros, quiméricos: os colóquios de amor são nuvens; os de mesa, simples fumo.")
Quando se é preciso fazer as vezes de galante anfitrião, ah!, meus senhores, os fins acabam por justificar de fato os meios. Sim, tratava-se agora de um curioso natal. Eram parentes distantes de meus paternos avós; faziam se sabe lá o quê em nossa ignota cidade. Sorte. (Já a consciência, senhores, a consciência...) Muito bem! Uma damazinha de traços e passos notáveis, e eu cá, em todo o salão, o único solteiro com mais de duas atrapalhadas décadas de insistências em vida. Ela e os pais tão somente. Bastavam-me apenas outros dois goles de uísque e algumas dúzias de palavras. Ela sorria para os meus desajeitos. (Uma pena, senhores, um pena que eu desempenhasse exatamente o contrário de meus planos... Ah!, ebriedade que me cativa! Oh!, maldita ousadia dos infernos!...) Um belo quadro para comédias e patacoadas.
A cena se dera rápido. Num átimo, já não mais respondia por minhas insanidades. Um bufão, senhores, um completo bufão. Uma noite de natal; uma encantadora jovenzinha. Poderia mesmo jurar que ela havia se afeiçoado com minhas elegâncias, ainda que um poucozinho só,,, Mas, não obstante, apressara tudo. Naturalidades de minha parte. Um trago. Dois. (Uma garrafa.) E em coisa de minutos, encontrava-me a disputar presentes contra todas aquelas criancinhas. Derrubara uma mesa; das cadeiras havia perdido a conta. Desculpas? Apenas enquanto pude manter a decência de pronunciar - corretamente, digo - as devidas palavras. Pois bem. Plenitudes de espalhafatos. Mantinha os sorrisos - eu juro, senhores, eu juro! Não importava mais... Àquelas tais alturas, toda a dignidade e a compostura haviam sido ultrapassadas. Aos diabos!... Afinal, quem gosta mesmo dos atos desprovidos de temperos? Sou ácido, admito. Mas, não obstante, sei do valor de minhas funções...
O retorno. Os arrependimentos. As chances, ainda que ínfimas; as reais chances de milagres e gracejos se esvaindo em facilidades tamanhas. Mais um dia, senhores, apenas mais um dia... Que natal o quê! O ano novo já está por vir... Novas promessas estúpidas. Seguimos adiante! (Ou não?)
No entanto, feito acréscimos inesperados, um braço me impede a saída. Era ela, senhores!... Ela. A danadinha - digo, minha ilustre e inédita priminha. Um sorriso, um agradecimento, um recado num papel... O que havia nele? Curiosidades, hem, portanto!... Números, números - números mágicos, meus senhores. (E viva, afinal, o natal!)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Metades (ou pedras rolando)

Seu maior medo era o esquecimento. Faltava-lhe algo; sempre lhe faltara algo... Numa palavra, encontrava-se cronicamente insatisfeito. Desacreditava em diagnósticos e previsões. Mas, não obstante, suas impressões desconheciam a falha - aguardava impaciente pelo fim. Abandonaram-lhe todas as surpresas... Resignara-se diante de sua solitude incondicional. Não importava mais; “aos diabos!”, deveria ter gritado. No entanto, suas artes se faziam por incoerências - preferira desferir risos ao redor. (Lugares vazios, frios, inertes...)
Na véspera de sua grande mudança - não sabia de fato aonde ir -, despedira-se da mulher. “A culpa é minha, eu sei. Mas, querida, não faça uso de seus direitos em mim. Não nos pertencemos; apenas lhe amei com elegância - e nada mais.” Evitara por demasiado tempo tais vontades: uma ânsia e um ardor que lhe roubavam sono e tolerância. Dispunha de forma imprescindível da certeza de que, agindo assim, renunciaria a quaisquer modos de um lar. Tornar-se-ia andarilho, feito tempestade. Indesejável. Não recebera sequer um adeus. Era justo. (Não havia motivos para tais alentos.) Permanecera do lado de fora da casa. Até a hora exata.
Tratava-se de um dia apropriado - chovia pela manhã. Uma estação rodoviária; poucos pertences, dinheiro - suficiências. Nenhum itinerário. “Dá-me uma passagem para o mais pontual dos destinos.” (Aquele que urge, o instante.) Sorriu para a moça do guichê. Sentou-se em um banco de espera por quase cinco minutos. Ofereceu café a um indigente. Olhou para os próprios cadarços. E, num átimo, feito atos de uma peça mal-feita de teatro, já se mostrava longe.
A seu favor, tão somente a estrada. Sustentava-se inábil em pensamentos - esgotara-se por completo de planos e sonhos. Lera todos os livros de seu interesse; não havia mais nenhuma espécie de provas. Mas, não obstante, descobertas... A fronteira. Reinventava meios para não sucumbir às desistências. Um dia quase inteiro de viagem. Tratava-se de um dia comum. Ainda chovia. (Isso já não lhe proporcionava tantos receios.) Arrependimentos? Unicamente do tempo perdido. Cabelos alvos... Uma insone alma juvenil.
Sentia a vida como grãos de areia que escorriam por entre os dedos; agora, adrede, atirava-os ao horizonte com as próprias mãos. Decisões. Tornara-se estrangeiro. Sabia nada além do instinto. Consumia avidamente as suas últimas impressões. Selvagerias. Via-se então, embora imerso em contradições, exatamente da forma que esboçara para si, há décadas... Uma terra inesperada, ações e respostas desmedidas. Identificava-se em reflexos de bares e vitrines. Abraçara dores e prazeres. Um comportamento incomum. “Cinquenta anos... Cinquenta anos desconhecidos.” Sorrira mais uma vez. Meios copos vazios, palcos gastos, jovens moças - e lá fora, lá fora a estrada novamente a lhe incitar pecados. (Ainda era cedo...)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Intermédio

Esses caminhos, senhores, esses caminhos pelos quais alento e desespero se perdem e se cruzam feito dia e noite - ah!, como tudo isso é tão imprevisto... Há pouco tempo, há muito pouco mesmo, encontrava-me a salvo. Uma condição tão somente, é bem verdade; mas, não obstante, um abrigo. Dava-me por sereno. Efemeridades, no entanto - jamais conseguira dormir de fato. A chuva não mais me alcançava, mantinha-me vivo e quente... Os olhos, apenas os olhos deixavam escapar fagulhas de minhas insustentáveis inquietações.
Dias distantes, dias distantes de mim. Por mais recentes que sejam passados e recordações, hoje, senhores, os dias se mostram controversos. Incertezas, inviabilidades... Pois bem! Sei nada do amanhã - nunca o soube na verdade. Sigo constante em solidão. (Os olhos venceram a calma artificial...) Tardes, noites, manhãs; desfiz-me das distinções. Não há mais volta, feito minhas idades perdidas... Tanto tempo, senhores, tanto tempo! Afinal o que há de errado em mim? Será o paladar - ou as palavras incontidas? Faz mal não, faz mal não! Enquanto houver um coração, seguirei mesmo constante (ainda que em solidão)...
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Semana dessas a encontrei, assim, sem mais nem mais. Saía de uma loja de roupas; olhava as horas num relógio imaginário. Finalmente abriu a própria bolsa - procurava pelo aparelho celular. Diante de ensejos tais, sentia-me sempre embaraçado, como se minha presença gerasse um incômodo - um pequeno distúrbio, uma ânsia e uma desnecessária espera. Aguardara pelo desfecho daquela cena; andava refreando cada um de meus passos... Ela levantou a cabeça e mal me reconhecera. Não obstante, o sorriso, o sorriso já disposto em mãos. Num átimo, feito arco-íris, sua consciência emergira da introspectividade de sua busca pela ciência das horas. Aí, senhores, aí, numa palavra, fora agraciado com um sorriso ainda maior - o mais pontual de todos os sorrisos. (Ela sabia muito bem com qual deles se vestir...)
Fazia da vida desprendimentos. Leve. Responsável. Bela. Presente. Ria tristezas, bebia alegrias. Assumia sinceridades. Uma loja de roupas, senhores... Mas, não obstante, largara-as todas, as sacolas, ao me reconhecer. Um abraço. Simplesmente um abraço que, feito preces e magias, devolvera-me os dias - as distâncias. Uma palavra - ou duas - e nada mais apresentar-se-ia condicional.
- Olá, meu amigo!...
Desarmara-me as aflições. Equívocos, expectativas, tudo se transformava menor. Ela, a brandura, os sorrisos, os olhares - nuances de simplicidade... Fizera-me paz; das infelicidades, diversões. (Naturalidades.) Uma beleza natural, uma inefável beleza natural...
- Escute, não quer ajuda, moça?
- Ah!, mas eu já sei que a tenho... Aonde for, não é verdade?
(Sim, é bem verdade...)
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Mas, não obstante, incertezas... Inviabilidades. Ao fechar os olhos, a vida parece querer contrariar todos os meus controles. Virtuais influências. Cravo os pés sobre o chão - dentes cerrados; uma respiração ofensiva. Ergo minhas vontades. (Ainda que improvável...) Dos instantes faço eternidades espontâneas; das horas, senhores, das horas, fotos e documentos. Desconheço no momento rumos e trilhas - apenas sigo adiante.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A Todos Aqueles Que Prezo (sabeis vós quem são...)


Uma manhã fria em outubro. Incoerências, imprevisibilidades. Contrariedades. Por mais que julguemos tendências e analisemos prudências, comportamentos tais jamais deixarão de existir. Somos espelhos do nosso ambiente. Nascemos e morremos em períodos menores que um dia. Vagamos entre razões e insanidades, vontades e resignações, lutas e entregas - isto se mostra numa freqüência avassaladora. Sentimos o peso dos sentidos, imposições e significados. Perdemo-nos na completa ausência das moralidades. Necessitamos de equilíbrio. (Mas, não obstante, nossas almas insistem nas extremidades...)
Meus atos recentes questionam a própria racionalidade. Riscos e mágoas, isso é tão somente a oferta que recebo. Fecho os olhos, vem-me o medo. Inseguranças. Miro o horizonte e desafio minhas fronteiras. Permanecerei na incompreensão alheia, alvo das condenações... Faz mal não!, faz mal não... Meus amores, admirações e meu respeito demonstrar-se-ão maiores que quaisquer desentendimentos. Se hoje busco a solitude, é porque me vejo incapaz perante os compromissos. Injustiças tamanhas de minha parte - exatamente por isso é que me ausento de exigências e expectativas. Àqueles que amo, resta-me apenas um pedido de perdão. Nada aqui dentro, com relação a todos vós, nada aqui dentro há de se apagar. No entanto, neste momento, abandonam-me as forças da beleza e da sublimidade. Serenidades, não consigo mais atuá-las. É preciso a revolta. As insubordinações... E, queridos senhores, haveis de admitir, não é mesmo justo que eu trilhe tais caminhos de mãos dadas. Trata-se de uma tarefa minha, tão somente minha.
Atuo agora com estranhezas, é bem verdade. (Feito manhãs frias em outubro.) Desprendo-me das considerações. Mas, não obstante, carrego comigo todas as lembranças, todos os semblantes. Gratidões, eternas gratidões. Sorrisos nos bolsos. O melhor de vós, apenas o melhor de vós...

sábado, 17 de setembro de 2011

Incondicional II

O conceito humano de felicidade consiste numa linha reta - ilimitada. Um trem bala rumo a infinitas, singulares ocasiões e graciosidades. Realizações ímpares, inefáveis impressões. Um quê de inesgotabilidades. Somos incapazes de desenhar perfeições sob estática. Precisamos nos encontrar sempre adiante - desbravadores. Do desconhecido, do prazer, da vitória. E justamente aí é que reside e se inicia a nossa própria ruína.
Trata-se de algo incondicional: o fado das frustrações. A insatisfação eterna. A indizível linha reta, jamais preenchida. O máximo que se pode alcançar são estados temporários - ilusões elegíveis. Volubilidades. Posses, amores, paixões - a lascívia... Conhecimentos, capacidades; descoberta. Verdades corruptíveis. Tão somente falsos traços desse caminho de utopias. Sonhos. Névoa. Cegueira - nada mais.
Descontentamos de imediato com as conquistas corriqueiras, caídas no esquecimento. Construímos pedestais às novidades. Sonhos sempre tão maiores que a necessidade. Afinal, e disso se trata a nossa condição, precisões e obrigatoriedades não compõem prazeres. Requeremos mais, um pouco mais. Na verdade, uma imensidão desconhecida de beatitudes é o que se opõe entre o eterno presente e o ímpeto das insaciabilidades.
Contrária a semelhantes expectativas, a ideia do Paraíso se fundamenta em pequenos círculos de hábitos e paladares. Serenidades. Trata-se do pensamento religioso - cordeiros e pastores. No entanto, tal quadro tão somente é imaginado em futuras e dúbias realidades. A prorrogação da alma. Não é exatamente do que se precisa nesse instante: continuaremos a devanear com uma linha reta. E, confesso, sinceramente não creio ser possível negar tamanha natureza - não somos domesticáveis. Sempre haverá, não importam crenças ou lutas - ainda que seja unicamente uma fagulha, um lapso de memória, centésimos de segundo de reações inesperadas -, haverá sempre uma inacabável melancolia no imo da identidade humana; algo que possa até morrer de forma latente, mas que inexplicavelmente servir-nos-á sensações incompletas. Metades, sempiternas metades.
Que fôssemos ovelhas de fato! Mas não... Desejamos o futuro - é mesmo incondicional. Restam-nos apenas as incertezas. Ensaios de felicidade. Mas, não obstante, é impossível viver sob tais esboços; uma chance é o que temos. Uma única chance. (Ah!, como eu queria saber alegrar-me de verdade, feito meu cachorro...)

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Fusca (crônicas de um miseravel)

Penso, logo desisto. Uma lástima, senhores, embora saiba muito bem desse lugar comum. É-me tão árdua a continuidade das intenções: ânimos e boas vontades esvoaçantes. Um dia é o período máximo de minha tolerância. (Coisa curiosa, há muito em minha vida nada acontece; ainda assim, a impaciência... ) No seguinte, já não quero mais. Deixa tudo como está - não fará muita diferença. Outras sextas-feiras virão!...
Certo dia me ocupara do equívoco de atuar o cavalheirismo - um pneu furado. "Um pneu furado!"; julgara semelhante tarefa um simples e louvável ato. Uma senhora de longas primaveras acumuladas - parecia mais uma beata oriunda da Ordem das Carmelitas Descalças -, um infante de aparência não tão amistosa; um fusca branco. Óbvio, faltava apenas o hábito - teríamos então a cena completa. Sentira-me observado por santidades inquisidoras... Como não ajudar? Pois bem, cinco minutos - não mais que isso. Cinco minutos... Para cada maldito parafuso literalmente talhado, isso sim!
(Deus!, seu ser vingativo, você há de me pagar uma suntuosa recompensa por isso!...) Aquela inoportuna velhinha não possuía as ferramentas necessárias sequer em um mínimo estado apresentável de uso - o pior nem fora todos os meus dedos esfolados... Tratava-se de uma semissurda, a infeliz. "O quê, meu filho, um macaco? Ah!, sim, sim! O macaco. Que macaco?..." E a criança então, senhores? Tamanha agra impressão a seu respeito logo me habitara como que um preconceito. No primeiro dizer, um fato.
- Meu pai faz isso muito melhor que você.
- Perdão, pequeno gafanhoto, mas ele não teve muito sucesso no ato da consumação, é verdade?
- Como? Você é canhoto? Mas isso é lá mesmo um problema? O que tem a ver com a ação? - a pobre santinha insistia em decifrar minhas palavras...
E o pior: o sol declarava a sua inimizade perante minha pessoa. Malquistas camisas sociais!... Ainda havia uma tarde inteira de horas de labuta - poderia jurar que o famigerado macaco não aguentaria a pressão. Tudo bem. Até então...
- Por obséquio, não dá para ir mais rápido, meu senhor? É que eu tenho compromisso... - agora era a vez da velha resmungar; tudo isso por querer mesmo ajudar.
- Senhora, minha senhora, banco o mais presto possível. Se ainda não acabei semelhante encargo, saiba por que: doem-me os botões.
- Como?
- Pois não.
- Os botões?
- Da camisa, minha senhora.
- Ah. Entendo...
- Ele não diz coisas, mamãe... Que disparatado! - sim, eu sei, sou merecedor de meu próprio fado...
O silêncio. Por vezes, provavelmente por várias delas tais, o silêncio é o melhor dos instrumentos, sejam lá quais forem os ensejos. Mas, não obstante, sempre considerei mais justo operar com mãos vazias.
- Seu nome, criança?... Pois bem, quer um doce? Segure esta roda para mim. Mas não suje os dedos - ah!, que maçada!... Então. Fica para a próxima!
E o pior? Os botões. O bojo. Aos diabos! Como estas rotinas nutricionais ousaram me deixar assim?... Algo deveria ser feito - imediatamente. Com um quê de prioridades. Exercícios! Emagrecimento! Aparência! (Mulheres...) Ora, quem um dia irá afirmar que um miserável não credita valores a tais caprichos? Experimentem sobreviver sem essas danadinhas... (Depois, depois; vejamos...)
Pois bem. Tratava-se de minha hora de almoço. A Hora do Almoço! As escrituras sagradas... E o imbróglio dos pneus furados - e a recompensa, senhores? A ingratidão. "Ah!, agora não precisa mais de apreços; meu compromisso já está desonrado. Que inutilidade!" Inútil. Misérias... Não se fazem mais damas de cristo como em tempos idos. Infortúnio! Oficialmente fora um terço de hora em combate - mas, não obstante, o cenário gravar-se-ia ao longo de minhas memórias naquele dia. Outro dia... N'outro dia me comportara de forma semelhante - e em outro. E mais outro... E para quê? Simples. Iniciativas serão sempre iniciativas. E o depois - o diabo no meio da rua! - que fique para depois. Tenho dito. Destrato com facilidades tamanhas o extraordinarismo. (Mas, vejam bem, não é por maldade - apenas por falta de tom.) Heróis que não transpiram, atores que não envelhecem, escritores que não perdem a razão - pais que trocam pneus em tempos hábeis... Condenada seja essa corja intocável! (Não obstante, desejável, insuportavelmente desejável...)
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E quanto aos dizeres de meu amigo francês, cujo nome de forma lamentável se é confundido com bolsas e sapatos? Atuarei com sinceridades outra singular vez: não me faz a menor estima no momento. Mas, não obstante, manter-me-ei o propósito, quebrando assim minha infindável sequência de lacunas por preencher. Deem-me, senhores, um tempo - e tudo estará resolvido. A preguiça, o sobrepeso, a coceira nos olhos; todos se lembram de cor, não?
"Não sei que filósofo disse: - Nunca faltarão mulheres velhas." Com efeito, poderia muito bem essa afirmativa haver contraído origens nas reflexões de meus intestinos - pois é verdade, semelhantes obsoletas senhoras repletas de fastio é que existem soberbamente. Coitados daqueles que, assim como eu, insistem, ainda que de forma imune a resultados, nas agradabilidades!... (Sim, eu confesso, seria mais digno de minha parte esclarecer a raridade de tais insistências; não cabe a mim, convenhamos.)
Portanto é isso, meus senhores. A vida imita a arte - ou seria exatamente o inverso? Já não sei mais dos projetos, das ideias; grito apenas por meu direito às desistências - de consciência livre. O que é um problema. Um intrínseco e verdadeiro problema, digo eu. Cedo ou tarde, tenham a plena ciência disso, cobraremos de nós mesmos todas as ausências que representamos. Que seja tardio... Ora!, o diabo que cuide dos imediatismos - viver me exausta de fato. Uma lástima, é sim - uma lástima. (No entanto, um ou outro prazer pusilânime e indecoroso sou capaz de encontrar pelo caminho, eh eh eh!...)

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Desculpas

Durante um longo tempo, e isso já faz alguns anos, fazia de minhas impressões inocentes e doces palavras. Tentava, munido delas, em vão, conquistar mundos e atenções. Ousava ser alguém belo, casto, correto - um coração juvenil. Sim, isso já faz alguns anos...
Além de não haver tocado superiores intenções, infame, eu fui ao chão. Distúrbios, discórdias, dores - amores. Não obstante, amores... Assumi a culpa de toda a humanidade. Uma alma vazia, uma vida vazia - e o início de uma épica busca. Nascia aqui toda a minha vontade. Com ela, minha força. Foi inevitável; invadia-me, após, por completo, a revolta.
E, no auge de minha irascibilidade, cerrei os punhos - reclamando por minha parte das maravilhas. Jamais as encontrei; sequer foram vistas. Assumi a solidão. Despi-me da moral. Reneguei todas as promessas, desdenhei das esperanças. Imbui-me em ações. E assim, como quem já não quer mais rezar, feito improbabilidades imprevistas, redescobri os sorrisos.
Tornara amor - verdadeiro, absoluto. Aceitara os equívocos; do humano jamais havia me desfeito. Atingira a sinceridade. Novos ares, novos olhares. A arte. A compreensão - ainda que incompreensíveis sejam estas minhas novas vestes. O cerne, o imo - a razão. Sentimental.
Mas, não obstante, era mesmo inevitável. A inconveniência insistia como minha companhia. Mudanças desprovidas de rumo, giros inúteis sobre si. Eu amo. Sempre amara desde os primórdios. No entanto, maldoso, continuo desconhecendo a capacidade das demonstrações. (Um dia, quem sabe, um dia...)

Monólogos Binários

Ele se mostrava ansioso antes mesmo do primeiro ato. Desconfiava, faltava-lhe a crença. Não por má conduta, mas por desacreditar no êxito. Fugiam-lhe motivos para tal - a distância, as diferenças, a ausência de predicados. Era um rapaz comum, ainda que obstinado por complexidades. Um dia inteiro pensando no momento prestes a ocorrer... Era impossível deixar de prever mais um fracasso.
(A tela já acesa; um pouco tarde... Todas as suas inúteis tarefas encerradas.)
- Olá! Então você veio... Como está? Ocupada?
- Não... Apenas lhe esperando. Sono.
- Esperava-me de fato? Fico feliz por saber...
- Mas não era o combinado? Não entendo.
- Ora, você me conhece há tempos. Como foi o seu dia afinal?
- Nada demais.
- Veja, eu... Já faz tanto tempo que... Espero que esteja bem.
- Conte-me. Conte-me o que tem para contar.
- Ah! Verdade. Eu tive um sonho, um dia desses. Eu...
- Um sonho? O que tem ele?
- Você.
- Como?
- Você estava no sonho.
- Eu?
- Sim. Sei que não é novidade alguma, mas ainda assim - um sonho.
- Quero sabê-lo. Espere só um minuto.
Era inevitável. Em todas essas esperas, ao longo de noites incontáveis, subitamente seu corpo abria mão da autonomia. Passava a viver em função delas. Tudo esvaecia. Opiniões, vontades, impressões - tornava-se escravo. Uma condição irracional.
(Ele se levanta. Vai à cozinha - café e algumas torradas. Já se passaram mais de cinco minutos.)
- Vamos, conte-me.
- Oi? Ah! Sim. O conto - digo, o sonho...
- Claro.
- Sonhei com você num dia desses.
- Isso eu já sei.
- Foi nada, mas é que ficou guardado comigo...
- O quê?
- Você olhando para mim...
- Ora, diga logo!
- Você estava... Olhando...
- Isso você já disse.
- Não apenas olhando, mas observando.
- Como assim?
- Tentava capturar-me. Li isso num livro.
- Mas que ridículo!
- Sim, eu lhe disse que era nada demais...
- Está longe de ser nada - é absurdo.
- Perdão. Eu... Não acontecerá novamente.
- Quá-quá-quá! Gostaria de saber como será capaz de controlá-los, esses seus sonhos... Quá-quá-quá!
- É verdade. Eu não sei como.
- E aí?
- O quê?...
- O que mais?
- Nada.
- Só isso? Continuo com sono. Acho que vou indo.
- Sim... Não! Espere. Você não me disse ainda direito como foi o seu dia...
As perguntas que ele fazia, a angústia envolvida, a importância das respostas - quer elas quais fossem -, tudo isso sempre fora vital para sua sobrevivência. Ele transformava toda e qualquer trivialidade, dela, em verdadeiras buscas espirituais. Sem querer - aquilo passara a ser a nutrição de suas veias...
(Ele liga o player de sua máquina - uma música sombria. Versos subliminares. Arte para se ganhar dinheiro - que suas entranhas a interpretavam tão equivocadamente... Inspira o ar feito um condenado.) She seemed dressed in all of me/ Stretched across my shame/ All the torment and the pain/ Leaked through and covered me
- Cansativo, estressante, frio e monótono.
- O que houve?
- Nada.
- Se eu pudesse fazer algo...
- Não pode.
- Como vão os estudos?
- Normais. Escute, eu preciso mesmo ir.
- Está bem. É que eu só queria dizer que...
As palavras, as palavras nesse exato momento lhe pareciam traiçoeiras - silêncio ou confissão? Hesitava, oscilava entre a culpa e a salvação. Rasgava, minuto a minuto, a noite. Ainda assim, ainda assim congelado na reincidência de suas fraquezas.
(A mesma música toca outra vez... Uma única luz brilhando no quarto escuro.) I'd do anything to have her to myself/ Just to have her for myself/ Now I don't know what to do/ I don't know what to do/ when she makes me sad
- Bem... É que, saiba, eu gosto de você...
- Eu também.
- Não, digo, é que eu penso muito em você...
- Sim.
- Estava com saudades. E preocupado.
- Com o quê?
- Com você.
- Eu não tenho nada, homem!
- Mas é que... Eu me preocupo. Está com sono?
- Estou.
- Espero que durma bem. Vou rezar para que isso aconteça.
- Eh eh eh - e desde quando você sabe rezar, hem?
- Eu não sei. Mas irei pensar em você.
- Não diga mais isso.
- Tudo bem. Eu...
- Boa noite.
Ele fingia serenidades. Mas, não obstante, desejava ardentemente por fugas e destruições. Das obrigações. De si mesmo. Do que fosse preciso. A escuridão não era tão simples assim quanto imaginava...
(A goteira na pia da cozinha o chama de volta à realidade. Os últimos minutos - quiçá, os primeiros...) She is everything to me/ The unrequited dream/ A song that no one sings/ The unattainable/ She's a myth that I have to believe in/ All I need to make it real is one more reason/ I don't know what to do/ I don't know what to do/ When she makes me sad
- Eu... Boa noite, moça. Fique bem. Até amanhã...
- Amanhã já é sexta-feira.
- Ah! Sim. Entendo. Então até mais...
- ...
Nada poderia ser pior - até, horas depois, ele perceber a insônia invasora de seu cansaço. Não haveria amanhã. Apenas outras vinte e quatro horas.
(Ele vai ao banheiro. Olha-se no espelho. Já não se lembra mais das promessas vazias que havia feito há tão pouco tempo.) But I won't let this build up inside of me/ I catch in my throat/ Choke/ Torn into pieces/ I won't - no/ I don't want to be this/ But I won't let this build up inside of me
- Eu sei que você já se foi, desculpe, mas não conseguiria ir embora sem lhe dizer tais palavras: eu preciso de você. Muito. Sei também que estou errado, e que logo irei arrepender-me de tudo isso - porém é maior do que minhas forças. Tem-me em mãos. (Tenho medo do que possa fazer comigo.) Tudo o que me importa é que seja feliz. Eu... Eu não sei mais o que dizer. Desculpe. Uma boa noite.
- ...
Depois de sua última mensagem - penitência, auto-humilhação -, uma certeza lhe é desenhada de forma permanente; ele jamais estaria livre. Mas, não obstante, era de conhecimento próprio que tamanha condição fora escolhida por ele mesmo. Para sempre.
(Nenhuma luz presente... Um barulho sequer. Tão somente dois olhos funcionando freneticamente.) She isn't real/ I can't make her real
x
Em um lugar remoto, num quarto inimaginável, ela se levanta - insone, apesar de ter se deitado há pouco. Algo lhe faz voltar atrás. Lê, antes mesmo do dia nascer, aquela última mensagem. Não sabe explicar por que, mas a responde para si. Chega a escrever, apenas para ver como ficariam as letras coloridas - e as apaga em seguida. Mas a resposta lhe reveste a identidade, manchando-lhe, confundindo-lhe. Volta a se deitar, mas o sono não mais existe. (Perturbações, torpezas, desejos, necessidades.) Ela sabe que nunca mais será a mesma.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Abrigo

Seus olhos descobridores a denunciavam - envolver-se-ia por toda a vida com as nomeadas questões eternas. "Até onde vai o infinito? Por que o céu é azul? Deus inventou todas as coisas, tudo bem - mas quem é o pai dele?..." Fazia de seus fortes traços uma continuidade dos próprios sentimentos. "As religiões pregam o amor; ora, mas por que então tanta desconfiança entre elas?" No entanto, aprendera logo a não obter espécie alguma de resposta. Com o tempo - e isso nunca se dava da mesma forma, tratavam-se sempre de um ineditismo inesperado - habituara-se a tecê-las por si mesma, as respostas. Mantendo aceso, é claro, o seu natural olhar inquiridor - e diante daquela recém condição de independência de raciocínio -, crescera assim, como que um encanto e uma surpresa.
A infância. Ela fora a razão e o orgulho de uma família; ao menos deveria ter sido. Sim, pois, suas nuances, por mais suaves e inofensivas, expunham a unicidade de seu comportamento. Uma luz, um sol - ainda que de rumos indefinidos. Para ela não havia poréns e afins... Flexionava todo o rigor do antiquado; transformava o comum em manhãs de feriado. Criança. Seus belos tons de ébano ilustravam a diversidade de ações - expressões. Ela, aos poucos, redefinia os limites do sentir - e do viver.
Vi-a sempre assim, espontânea. Risos, sorrisos - a alma desnuda dentre o dentes. Com uma impressão notável e uma resposta para tudo... Mas, não obstante, eternamente sem ponteiros. Talvez ainda se indagasse pelas beiras do infinito, quiçá possuísse no coração uma bússola (daquelas que não apontam para o Norte) dos desejos. Verdade era que vivia agindo e esperando - mais agindo do que esperando. Um exemplo para quem realmente se dispusesse a manter os olhos abertos. Ainda que jamais, desconfiava-se, assegurasse o próprio valor, a própria grandeza. Melhor assim, quem sabe.
Encontrava-se perdida, solta em suas vontades - a verdadeira liberdade. Despreocupava-se (arte corriqueira ao longo dos anos porvir). Nutria laços de íntima amizade, mas, não obstante, insistia em conceder parte de seu brilho a qualquer um. Sem exceções. Sua vida era sempre brincar - fazia a diversão de suas indistintas condições. Perguntavam-lhe: o que quer ser quando crescer? "Não sei." Hoje, um quadro um pouco diferente: o que deseja dessa vida? "Um abraço." Não obstante, sempre, sempre criança...
Num dia desses quaisquer, ela me aparece, feito quem não quer nada, em ruas e lojas, alheia, de óculos escuros, fingindo ser a mesma pessoa, como que numa cronicidade permanente, a todo momento. Uma pequena dádiva nos lábios, mas era evidente a tristeza em seu coração. (Uma cena dessas não devia, ainda que necessária seja, não devia mesmo existir.) Faz mal não, criança, faz mal não... Se eu pudesse, oferecer-lhe-ia abrigo. Porém, por uma maldade do destino, sou daqueles que mais pensam, negligenciando atos e impulsividades... Faz mal não! Sei que ela, um dia, consertará todos os defeitos do mundo. Um dia, criança, um dia.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Liberdade

Não foi hoje que tamanho pensamento se consolidara em minhas capacidades - trata-se disto algo antanho, de outras épocas um tanto quanto frescas de memória. Mas, não obstante, adrede foi o momento - o insight. E, importante, não sei se por convenção ou falta de rumo, palavras se fizeram por precisão, a fim de registros - ainda que desnecessárias sejam. Explico-me.
Três são os ensejos: a iminente presença do frio, meus últimos preparativos frente à véspera de uma corrida decisiva de cinco quilômetros, a semana da luta antimanicomial. O alvo de discussão - liberdade. Ah!, a liberdade... O que somos nós sem semelhante termo? (Na verdade, viveremos indiferente a quaisquer concretidões, porém uma definição de liberdade é questão vital, cedo ou tarde, para todos.)
Ilusões, utopias, ausências por completo de sentidos - significado. É inevitável; liberdade se mistura a tudo isso, de uma forma frustrante e obrigatória. Mas seria esta mesma a sua verdade? Possivelmente. Ou melhor, talvez não... Liberdade é não saber, não responder por si - desenraizar-se. É desconhecer caminhos, nutrir vontades e afogar reações (consequências). Ser/ estar livre é, sem mais nem mais, encontrar-se perdido. É, sim, o mundo à revelia...
E o que há de mal nisso? Eu vos digo - a mim é indiferente. Mas, não obstante, conceitos errôneos nos levam tão somente a escolhas equivocadas. Quando gritamos liberdade!, de fato nosso desejo primário é a perdição, a ausência de intenções?... Vejamos bem.
O que desejamos veementemente, os nossos elos intensamente carregados de ardor e pungência, pelo que gritamos de verdade é, numa palavra - e aqui, senhores, absolutamente não há distinções, uma sequer! -, o que realmente buscamos são os propósitos, as idéias (a identidade). E, não há por que protestar, de tais não se tratam a liberdade. Propósito, idéia, identidades, tudo remete a compromisso. Responsabilidades. Melhor dizendo, tratam-se de pequenas prisões aprazivelmente admitidas. Somos o que estamos dispostos a fazer. Felicitamo-nos com as vontades ferrenhamente conquistadas. Isso requer luta, sacrifícios, caminhos traçados e trilhados. Não há um dedo de liberdade nisso; no entanto, em tais condições, encontramo-nos repletos de significados. Plenos de sentido. É inegável, dizei vós, é inegável que ser livre não é o verdadeiro desejo universal (e por que não?).
Poderia ilustrar semelhante razão com inefáveis desenhos, anelos, situações. Porém não executá-lo-ei; exercerei aqui o meu direito ao egoísmo. Digo apenas sobre mim, sobre minhas prisões necessárias. O frio é uma condição, um ciclo - um tempo para reclusões, reflexões. Das loucuras alheias, insisto: saibamos lidar com as nossas; o primeiro passo - a aceitação. Por fim... A corrida? Muito bem. O lugar mais alto do pódio deve ser almejado, embora inesperado. A glória é mais apraz quando real. (Aqui, um pequeno exemplo interessante: correr é sentir-se livre? Jamais! Quando se corre, é preciso saber exatamente para onde ir.)
E assim, mais uma semana - mais uma semana... De liberdades? Não; aos diabos com elas!... Eu quero mais é prender-me a tudo aquilo que sou, que faço, que anseio.

domingo, 24 de abril de 2011

A Ressaca (crônicas de um miserável)

Eis, pois, que o dia se encerrara. A noite, digo - melhor até; que um novo e curioso dia batera em minha janela, transmutado em raios solares despertadores. (Maldita dor de cabeça!...) Sim, porque, para se deparar com incríveis desfechos de sextas-feiras tais, a cachaça!, tão somente a cachaça alenta. Não obstante, talvez a desnecessidade de doses extraordinárias seja pertinente... Aos diabos! Que as minhas imprestáveis entranhas saibam lidar com isso. Afinal sou um sobrevivente. "De quê?", perguntam. Ora, eu afirmo: dos finais de semana, dos finais de semana... Das famílias, dos semi-ofícios, das ausências de sentido, das anedotas indevidas - e das senhorinhas lépidas e fagueiras. (Sem mais nem mais.)
Desconhecia a exatidão das horas. Desconhecia a importância do dia. Não sabia sequer como viera para casa... Ah, mas quem se preocupa com detalhes tantos? De que eu precisava - só indo à cozinha. (Dois analgésicos, por favor; uma xícara de café e uma dose daquela bebida ex-soviética que se usufrui quando parcos se encontram os vencimentos...) Mas, não obstante, pensava inefáveis vezes sobre o assunto. Valia mesmo a pena de me levantar? O diabo, o diabo sabe dessas situações - assim como os miseráveis. "Ah!, mas quanto drama, meu senhor..." - alguns podem indagar. Senhores, replico-lhes, não julguem uma autêntica falta de afazeres. Valores são belos em teoria, e quando se morre de amores (na verdade isso é uma inverdade, mas não quero discuti-la no momento). Não quando a ressaca é maior que o próprio estômago - e a dignidade. Jamais!... Experimentem atingir o fundo do poço sem ao menos conhecê-lo! Pois bem, decidi por me levantar. Não havia nada melhor ou pior a se executar.
Mas, não obstante, aquela não se mostrara uma simples tarefa. Logo após à saída de meu quarto, questionamentos perturbadoramente indelicados e inconvenientes foram dirigidos à minha pessoa... A verdade se revela a todo momento, basta atuar a paciência: nem uma nem duas, parentes sabem perfeitamente potencializar uma ressaca - de forma considerável. (O difícil mesmo é atuar tamanha paciência...)
- O que houve noite passada? Sabe que horas são? E que olhos são esses?... Sangue de Cristo!
(Essa é minha mãe adorável - às vezes.) Sem resposta.
- Ele estava de promiscuidade, mamãe, eu tenho certeza! Olha só essa cara de libertino...
(Apresentações são irrelevantes, não são? Pois bem.) Ah, mas o que exatamente esse moleque anda vendo na TV? Novamente sem resposta.
- Não é possível! Nessa idade, filho, e você ainda agindo feito adolescente?
(E você, querida progenitora, bancando a mãe-que-não-quer-que-seus-filhos-cresçam... Sei, sei.)
- Pois é, mamãe... Por que você não o manda embora? Ele já está grandinho...
(Embora? Para onde? Eu não acreditava que ouvira isso de meu irmão mais novo!)
- O quê? O que você disse? - pronto, essa era a deixa para me desvencilhar de tais abordagens e dirigir-me finalmente à cozinha. (Obrigado, "mamãe"!)
A enxaqueca aumentava na medida em que as memórias da noite anterior vinham à tona - náuseas, vômitos e perturbações oculares. Não, senhores, eu não sou hipocondríaco; apenas estava tomando nota da bula de remédio mais próxima.
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Naquele momento nada me satisfazia. Um completo vazio, apesar da indigesta situação. Jornal, televisão, a rua lá fora - não dispunha vontade alguma. Ainda que manter os demais habitantes da casa afastados de mim - a uma distância segura para meus ouvidos - fosse interessante, a indiferença já havia me tomado posse. Desejava nada não: talvez mais sono para poder dormir (e ganhar na loteria)...
Loteria - minha vida estava mais para roleta russa. Súbito, as dores iam se esgotando. (Não é que a medicina costuma funcionar quando se tem fé? Sem teorias conspiratórias dessa vez...) Mas, não obstante, as memórias - sim, aquelas mesmas de outrora - faziam-se por presentes. E estas se desviravam em intrigas. E estas, cismas - e estas, iniquidades. (Pronto. Num átimo, voltara ao meu estado habitual de funcionalidade.)
Ah!, mas esta condição mais ou menos de ser - e de sentir - não é mesmo adorável? Em tempo, a hora do almoço ainda havia de chegar...
Bem, esses momentos de depressão pós-ebriedade não são lá os melhores para se fazer quaisquer espécies de julgamento; mas, não obstante, algumas considerações - e condenações - eram de fato inevitáveis. Mudanças se faziam por necessárias. Mudanças significativas, mudanças em âmbitos diversos. Deveria parar com as irracionalidades - com os excessos e os quiproquós. Haveria de criar um modo para tal árduo traçado. (Mas como, exatamente como, diabos!, iria fazer isso? Em todo o caso, envolto em divagações é que não consegui-lo-ia...) Ora!, eu possuía um nome a zelar - qual mesmo, não importa. Pois bem, estava definido - de novas e sagazes atitudes se ordenariam os meus dias. "O pensamento é o labor da inteligência, a imaginação é a voluptuosidade. Substituir o pensamento pela fantasia é confundir veneno com alimento." Portanto, sem paixões arlequinescas de minha parte!...
Ah!, mas como um venenozinho é vital para nossas vontades - as volúpias. O que fazer quando quer-se o que não se tem, e principalmente quando o que se quer não se justifica? Desvirtuamo-nos até não mais poder - porque da razão se é inútil dizer em condições tais. Mas, não obstante, que eu não perca o foco: mudanças, rumos, sentido! (Não necessariamente sob esta ordem.) Porém, antes disso tudo, outro par de comprimidos só para cobrir as necessárias garantias, mais um sábado à-toa - e um suspirozinho de nada, o último que seja!, por aquela danadinha miserável... Por todas elas, por todas elas!, digo e não digo mais nada.

sábado, 19 de março de 2011

Vontade

Digo-lhes, pois, que possuo vontades por demais. Não obstante a obviedade de parte delas - ou da maioria, o que igualmente não deixa de ser verdade -, descreio na facilidade de compreensão a respeito de tais. Prazeres, satisfações - isso deveria ser tudo. (Não é bem assim.) Afirmações... De rodeios, basta!
Uma casa, um carro, um cachorro. Alguém que me ama o suficiente para se alcançar o sofrimento - lágrimas e risos. Que divide comigo dias e fatos (de forma inconveniente, por vezes). E que me desperta motivos para fixar raízes e seguir em frente - ao mesmo tempo, ao mesmo tempo... Um ofício; um ofício que não me cansa ao ponto de praguejar as segundas-feiras. Uma família e (certos) valores, (certa) dignidade. Claro, falta-me o dinheiro. Mas, não obstante, trata-se de algo impreenchível, comum e irremediável. O tempo se faz por razão - não me preocupo. Ora, pois, de que mais se veste esse meu querer?
Uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Eis aí algo do qual não me escapo. Vejo-me sempre inclinado a negar a resignação do pasto - mas, não obstante, por vezes chego a admitir a escassez de minha jovialidade para me deparar com a selvageria do desconhecido. A tendência de minha alma é vagar por entre semelhantes opostos... Os seguros ciclos de minha ordinariedade construída e a linha reta, desbravadora e intempestiva, de meu intrépido egoísmo. Encontro-me aí, como um pêndulo - o cabo-de-guerra.
No entanto, em meio a tantos desencontros, desequilíbrios, uma certeza se me faz - há tempos uma utopia; minha utopia. (Porque todos devem ostentar uma utopia - afinal de que servem todos esses malditos sonhos?) Trata-se do passado; melhor dizendo, do fim deste. De seu esquecimento - de sua irrelevância, esta é a melhor forma de minha explicação. Desejo mesmo, de fato, ser definido pela minha capacidade - pelo momento, por aquilo que posso fazer -; jamais pelo que já foi feito. Morto, acabado. Impossível tamanha condição. Como lhes disse, senhores, minha utopia.
Já estou divagando - trata-se disso um problema. Pois bem, meus desejos vão de encontro a pessoas, atos e condições. Mais além, digo, a uma identidade. E acima de tudo, ao reconhecimento. Anseio por manter-me em equilíbrio; mas, não obstante, descontroles e desesperos não me fazem mal. A grande dor é a mágoa causada - mas desse assunto, desse assunto falarei tão somente quando a chuva passar.
"Viver é negócio muito perigoso" - talvez não bem o viver, mas a vontade...

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Uma Folha De Diário

Assim como minhas impressões noturnas, ela se fazia notar por uma aparente simplicidade. Digo aparente, pois poderia ela facilmente ser identificada por seus sorrisos e belos traços - como se a vida fosse assim, resumida em sins e nãos. Sim, ela era sorrisos (e belos traços...). E, não, jamais tratar-se-ia de sua individualidade tão somente semelhantes imagens. Não desejava um mundo rendido sob seus pés. Mas, não obstante, talvez apenas por se sentir do tamanho de uma formiga - que só conhece o direito ao ofício. Tolhia a si mesma glórias e reconhecimento.
Era de uma sensibilidade aguçada e notável. Desprovia-se de julgamentos, mas era incapaz de desperceber o menor dos movimentos. Respirava com sinceridade, trabalhava com leveza, sonhava com dedos de criança. Vivia os seus dias presentes. Ainda que se atormentasse com as incertezas do amanhã, por mais que temesse comportamentos inexplicáveis, deixava transparecer unicamente atos de desenvoltura. Um exemplo; buscava um exemplo para se enxergar diante do espelho.
Sofria com as manhãs roubadas - seu sono precocemente encerrado. Males advindos de escolhas e necessidades... Dias duravam imensidões, perante tamanha entrega em sua carreira - seus planos sendo ferrenhamente, ainda que imbuídos de adversidades excessivas, postos em prática. Parecia tudo tão improvável... E qual era sua resposta? Óbvio, os sorrisos. Sorrisos, crenças, sublimidades. Cobranças eram naturais e esperadas; mas, não obstante, creditava valores no destino, no acaso, na bondade e na força do desconhecido.
Dos dias de descanso fazia sua festa pessoal - aguardava-os com uma calma inquietante. Noite, luzes, cores... Ebriedade, dinamismo. Celebrava suas mínimas dádivas com a maior das intensidades. Compensava mágoas e pedras com extasiantes imprevisibilidades. Ansiava encontrar um amor para a vida toda - e morria de medo e de tédio pelos laços e grilhões eternos. Conhecia um universo de pessoas; não preenchia os dedos das mãos ao contabilizar seus íntimos e constantes amigos.
Dizia-se por feliz, embora não soubesse defini-la - a felicidade. Amava a família, atropelando todas e quaisquer desavenças. Culpava-se mais do que se admirava. Mas, não obstante, confiava nas voltas que o mundo supostamente dá. E se pudesse escolher entre o dinheiro e uma tarde praiana ensolarada, saberia de cor e antemão qual biquíni usar...
Um dia desses, daqueles em que deus parece esquecer-se de nós, vi-a por aí, de cabelos presos. Deixara cair uma folha de papel. Ao dar conta de mim, ela já havia se retirado - o dia far-se-ia longo, por sinal. Decidi lhe entregar, aquela folha de papel colorida por escrever, de forma discreta, impessoal talvez. Mas ao ler a primeira frase, toda a minha intenção inicial se deu por vencida.
“Hoje chorei...”
É, a vida se faz mesmo por inconstante. E, de fato, as nuances mais pungentes são as intangíveis. Os detalhes verdadeiramente decisivos, as definições de humor, as sensações mais francas, tudo isso tão somente se é compreendido através da subjetividade de nossas vontades. (Estaria eu sendo injusto e cruel ao guardar comigo todas aquelas doces confissões? Mas, não obstante, algo irreversível acontecera em tal momento que a perdera de vista. Com sua alma revelada em simples e intensas palavras sob minhas mãos, diante de meus olhos, acabei-me num pranto mudo, silencioso. Talvez fosse felicidade, sabe-se lá; quiçá me deixara tocar por tamanha inocência de espírito - e tantos desejos, tantos sonhos, tanta vivacidade... Creio ter sido a certeza de não mais estar sozinho - de não tecer pensamentos únicos, fadados a uma morte prematura - o motivo de minha súbita satisfação. Sim, eu me encontrava pleno. Suas lágrimas me salvaram.)
Naquela tarde, os sorrisos ficaram por minha conta. Sua mágica havia sido concebida. Uma flor, lá do outro lado do planeta, desabrochara. E num átimo a harmonia negligenciada dos sentidos se fez presente.
- Quem disse que a beleza se vê isenta de infelicidades? Tudo bem, tudo bem, eu entendo você... Faz mal não! Um dia, moça, um dia tudo estará resolvido...

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Antes Que A Noite Chegue

E assim, como um quê de inexplicabilidades, transformaram-se minhas noites em estágios de um sono profundo. Tal nova e súbita condição haveria de verter consequências, além de se justificar em motivos - ambos desconhecidos até o momento. Trata-se do calor e da retomada de velhas rotinas? Não, não tão somente isso; descreio em simplicidades para mim. No entanto, reservarei a dúvida das causas para outra ocasião - por ora escolho lidar apenas com as reações, impulsivas ou não.
Não que a minha vontade se encontre prejudicada nesses dias, porém a dificuldade atual em me desvencilhar de semelhante latência, assim como de sustentar a vigília requerida pelas obrigações corriqueiras, parece amenizar as minhas capacidades. O ímpeto talvez, quiçá o temor pela ausência de atividades que tanto me é regular. Sabe-se lá... O que acontece, de uns tempos para cá, é que a minha sobrevivência a custo de produtividades e explicações meio que atingiu uma fase de inanição. (Um platô? Não, não - longe disso, senhores, longe disso...) E, coisa estranha, o que mais me sustém inquietações em tais horas é o fato de desconhecer a benevolência - e a travessura - de tamanha impressão.
Impressão esta que perdura por mais de uma semana. Incrível e atípica condição de minha parte, atravesso dias de uma serenidade imprevisível. Dias quentes. Dias leves. Despreocupações, descuidos até - desleixo ou negligência, quem sabe... Não obstante, impressões agradáveis e inéditas. Algumas resoluções não saíram como o esperado? Não importa; os meus atos continuam dizendo por mim. Não foi despertado - até então, por que não? - todo o potencial que acredito fulgir em minha essência? Faz mal não, faz mal não!... De tais momentos brandos faço minha condescendência. Ainda que se prolongue tão somente por mais este instante, esta linha que escrevo, comprazo-me com semelhante harmonia ordinária que curiosamente decide por abraçar as sombras de meus traços.
Ando aceitando antigos medos (ou seria resignação?)... Admirando pequenas linhas, nuances (uma recusa ao sublime, pode isso ser possível?)... Evitando heroísmos (uma inovadora desnecessidade?) ... Reservando-me o estado comum de viver - sei de que se trata de uma ignorância de minha parte; talvez aqui esteja ocorrendo certa mudança de opinião (afinal de contas, o que será de fato melhor, uma ventura mesquinha ou um tormento magnificente?)... Mas, não obstante, sigo sem querer saber de amanhã.
Outra semana está para se iniciar, e a única impressão que me vem é justamente a mesma. De antes, dos dias recentes. Ainda que sejam tão somente para dormir, as horas que se dão, quero-as assim. Suaves. Ainda que soe como ingenuidade ou velhice, que fique como está. Os sentimentos de agora. E nada, mais nada...
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(E isto é o que sinto agora, senhores, uma vontade incontida de confortar os corações do mundo. Mas, não obstante, cultivai a distância entre nós. Para que se mantenha a conveniência idealizada, ela se faz necessária - perturbadoramente necessária.)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Crônicas De Um Miserável (uma sexta-feira agradabilíssima - parte final)

Ah!, mas, no entanto, sou eu mesmo merecedor de tamanha delícia, e amorosa e curiosa felicidade? (Presença inexplicável e indiferente da beleza.) Numa palavra, não - claro que não... Ainda assim, ainda assim, que noite agradabilíssima. Ao final de tudo, ao final de tudo!... (Quanto tolhimento da ação - não obstante, é preciso, é preciso!...)
Numa palavra - pois naquele momento, sob mãos irrequietas, o aparelho celular enfrentava sérios riscos quanto a sua integridade física; este oscilava entre tais mãos e a iminência de uma queda inesperada -, numa palavra, encontrava-me incapaz de assimilar tudo o que ela, a lesta senhorinha, dizia-me. Ao fim, um convite - à casa dela, senhores, à casa dela!... O motivo? Bem, isso já não importava mais - aos diabos se eu não ouvira direito! Minha condição emocional insuflada me permitira tão somente - o que já se tratava de um esforço imensurável - memorizar o endereço. Rua tal, praça etc., uma escola, uma padaria, três quadras... Quatro quadras... (Pelo amor!, não há modos para tamanho armazenamento!...)
Pois bem, por mais incrível que parecesse, sobrou-me tempo até para um perfuminho barato - ah!, que coisa deplorável!... Um completo bufão. Lá estava eu, feito um juvenil, décadas sob as costas; ainda assim, um juvenil. Identifiquei uma luz acesa em um dos apartamentos do pequeno e único prédio do local - logo após a praça, a escola etc. Era ela; a luz era ela, digo, melhor, a luz era dela - ou do apartamento, ou de ambos, ou... Enfim, era ela. Decidi por anunciar minha presença através de um telefonema - uma segurançazinha de nada (que mal me faria?)...
Em instantes, ela surgira. Se houvesse dirigido meus olhares para cima, seria possível que me perdesse os sentidos. Não era a mesma senhorinha com que me acostumara tão brevemente a lidar na repartição - ela era outra pessoa, digo, outra imagem. (Relato um parágrafo sobre tal imagem? Não, não relatarei parágrafo algum - manter-me-ei egoísta até o fim dessa crônica!) Maravilha, senhores, maravilha! Vestido, cabelo, perninha - de fato uma coisinha admirável!...
E o que acontecera dali em diante, digo, após eu recobrar-me de meu semi-estado de catatonia? Bem, senhores, é de se imaginar, é perfeitamente previsível; mas, não obstante, trata-se de minha função contar o que houve - afinal, ela não vos diria absolutamente palavra a respeito. (Portanto, agradecei-me, ainda que tardio...)
A cena se deu assim: quinze minutos. Pouco menos de quinze minutos. Ela entrara no carro. Estava um pouco trêmula, embora agisse decidida. Um leve beijo como cumprimento. Aquilo tudo me deixou inebriante; ela alternava a direção dos olhares entre os meus e o porta-luvas. Eu cá não conseguia desviar-me de seus traços. E, logo de imediato à minha iniciativa de lhe dizer algo, como que me atropelando, ela me confessou a sua brilhante idéia.
- Perdão, pois sei de que se trata de sua hora de descanso, ainda mais em uma sexta-feira como essa - ela disse tais palavras prenunciando o pior para mim. (Ora o que tem de mais em uma sexta-feira como essa?) Não obstante, ela continuou. - Porém, é com a melhor das intenções que o chamei aqui. Tenho em mãos alguns documentos que, creio eu, irão facilitar e acelerar o seu trabalho. Eu, bem, eles estão aqui. Tome-os. É isso...
Não havia notado a pasta que ela carregava consigo. Não me importavam os detalhes irrelevantes; ela estava ali, em meu carro insignificante, diante de todas as minhas vontades e necessidades, para me entregar uma pasta que, segundo ela, continha elementos o suficiente para me auxiliar no ofício de minhas responsabilidades? Era isso então? Ela queria mesmo tornar-me um inútil por completo, incapacitando-me de meus próprios afazeres? Como se eu não estivesse à altura de...
(“Espera um minuto, deixe-me refletir sobre o sucedido. Quer oferecer-me hora extra? Do meu trabalho cuido eu, mocinha... Já de você, já de você cuido eu também!”)
Óbvio. Eu não disse palavra. Recebi a pasta, derrotado. Não obstante, toquei-lhe a mão - e senti toda a sua insegurança. Mas do que se tratava esse ato impulsivo da parte dela? Inocências?, uma galhofa?, indecisões?... O diabo, o diabo sabia o que ela possuía verdadeiramente em mente!
- Ah, é isso - após o meu toque ela demorara exatos três segundos para afastar sua mão, assustada, de minha. - Bem, obrigado. Muito obrigado. Não precisava de tanto esforço (ou pressa) afinal - mas, não obstante, era perceptível a sua fragilidade. - Prometo-lhe resolver tudo (mesmo!) já nesta segunda...
- Eu preciso ir. Eu, bem, trabalho amanhã cedo... Estou de plantão, e... Bem, é isso. Digo, eu preciso dormir cedo. Eu, bem, é isto. Pois, boa noite. Eu...
Ah!, mas só podia se tratar de uma troça - uma mofa! Ela, a senhorinha que respira altivez, que desfila trejeitos e gracejos, maliciosa, aquela que adora ostentar seu narizinho acima de nossos olhares, ela mesma, atuando desesperadamente? Ela exibia angústias, tão somente angústias e inquietações - dava para ouvir o coraçãozinho de beija-flor dela pungindo centenas de batimentos incontroláveis. Ah!, mas aquilo se tratava mesmo de uma piada... Um chiste, uma pilhéria - e nada mais, nada mais!
- Tem certeza? Não há nada que possa oferecer? Nós podemos, digo, se não for uma inconveniência, nós poderíamos conversar sobre assuntos mais agradáveis. Nem é tarde assim (ainda)...
Não obstante, ela foi irredutível. Dispensara-me. Uma bela - e precoce - suposta noite de sono fora a sua opção mais apraz. Ela saíra de meu carro, deixara-me com a sua pastinha. Trôpega, confusa, receosa; chegara por fim a sua residência. Ponto final. “Até logo. Até segunda...”
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“As mulheres brincam com a própria beleza como as crianças brincam com seus canivetes. Sempre saem feridos.” - pois bem, mas no ato de fato, o que fazer? Eu não iria atrás dela, amarrar-lhe os pulsos e reclamar-lhe os tremores e suores... Uma cena miserável, ainda que agradabilíssima. Após ligar o carro, com o verdadeiro intuito de assassinar o pusilânime silêncio, unicamente me restara um destino: a ebriedade! Doses, estupefacientes, toxicidades; o que mais aliviar-me-ia tal estúpida condição? E numa sexta-feira como aquela... Eu sabia que havia algo de inusitado, mas aos diabos!, que pessoas morram em seus plantões! (Nem que seja tão somente de tédio, senhores, de tédio - mas morram...) Revoltara-me com o belo e o sublime. Pronto, falei!...