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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Fusca (crônicas de um miseravel)

Penso, logo desisto. Uma lástima, senhores, embora saiba muito bem desse lugar comum. É-me tão árdua a continuidade das intenções: ânimos e boas vontades esvoaçantes. Um dia é o período máximo de minha tolerância. (Coisa curiosa, há muito em minha vida nada acontece; ainda assim, a impaciência... ) No seguinte, já não quero mais. Deixa tudo como está - não fará muita diferença. Outras sextas-feiras virão!...
Certo dia me ocupara do equívoco de atuar o cavalheirismo - um pneu furado. "Um pneu furado!"; julgara semelhante tarefa um simples e louvável ato. Uma senhora de longas primaveras acumuladas - parecia mais uma beata oriunda da Ordem das Carmelitas Descalças -, um infante de aparência não tão amistosa; um fusca branco. Óbvio, faltava apenas o hábito - teríamos então a cena completa. Sentira-me observado por santidades inquisidoras... Como não ajudar? Pois bem, cinco minutos - não mais que isso. Cinco minutos... Para cada maldito parafuso literalmente talhado, isso sim!
(Deus!, seu ser vingativo, você há de me pagar uma suntuosa recompensa por isso!...) Aquela inoportuna velhinha não possuía as ferramentas necessárias sequer em um mínimo estado apresentável de uso - o pior nem fora todos os meus dedos esfolados... Tratava-se de uma semissurda, a infeliz. "O quê, meu filho, um macaco? Ah!, sim, sim! O macaco. Que macaco?..." E a criança então, senhores? Tamanha agra impressão a seu respeito logo me habitara como que um preconceito. No primeiro dizer, um fato.
- Meu pai faz isso muito melhor que você.
- Perdão, pequeno gafanhoto, mas ele não teve muito sucesso no ato da consumação, é verdade?
- Como? Você é canhoto? Mas isso é lá mesmo um problema? O que tem a ver com a ação? - a pobre santinha insistia em decifrar minhas palavras...
E o pior: o sol declarava a sua inimizade perante minha pessoa. Malquistas camisas sociais!... Ainda havia uma tarde inteira de horas de labuta - poderia jurar que o famigerado macaco não aguentaria a pressão. Tudo bem. Até então...
- Por obséquio, não dá para ir mais rápido, meu senhor? É que eu tenho compromisso... - agora era a vez da velha resmungar; tudo isso por querer mesmo ajudar.
- Senhora, minha senhora, banco o mais presto possível. Se ainda não acabei semelhante encargo, saiba por que: doem-me os botões.
- Como?
- Pois não.
- Os botões?
- Da camisa, minha senhora.
- Ah. Entendo...
- Ele não diz coisas, mamãe... Que disparatado! - sim, eu sei, sou merecedor de meu próprio fado...
O silêncio. Por vezes, provavelmente por várias delas tais, o silêncio é o melhor dos instrumentos, sejam lá quais forem os ensejos. Mas, não obstante, sempre considerei mais justo operar com mãos vazias.
- Seu nome, criança?... Pois bem, quer um doce? Segure esta roda para mim. Mas não suje os dedos - ah!, que maçada!... Então. Fica para a próxima!
E o pior? Os botões. O bojo. Aos diabos! Como estas rotinas nutricionais ousaram me deixar assim?... Algo deveria ser feito - imediatamente. Com um quê de prioridades. Exercícios! Emagrecimento! Aparência! (Mulheres...) Ora, quem um dia irá afirmar que um miserável não credita valores a tais caprichos? Experimentem sobreviver sem essas danadinhas... (Depois, depois; vejamos...)
Pois bem. Tratava-se de minha hora de almoço. A Hora do Almoço! As escrituras sagradas... E o imbróglio dos pneus furados - e a recompensa, senhores? A ingratidão. "Ah!, agora não precisa mais de apreços; meu compromisso já está desonrado. Que inutilidade!" Inútil. Misérias... Não se fazem mais damas de cristo como em tempos idos. Infortúnio! Oficialmente fora um terço de hora em combate - mas, não obstante, o cenário gravar-se-ia ao longo de minhas memórias naquele dia. Outro dia... N'outro dia me comportara de forma semelhante - e em outro. E mais outro... E para quê? Simples. Iniciativas serão sempre iniciativas. E o depois - o diabo no meio da rua! - que fique para depois. Tenho dito. Destrato com facilidades tamanhas o extraordinarismo. (Mas, vejam bem, não é por maldade - apenas por falta de tom.) Heróis que não transpiram, atores que não envelhecem, escritores que não perdem a razão - pais que trocam pneus em tempos hábeis... Condenada seja essa corja intocável! (Não obstante, desejável, insuportavelmente desejável...)
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E quanto aos dizeres de meu amigo francês, cujo nome de forma lamentável se é confundido com bolsas e sapatos? Atuarei com sinceridades outra singular vez: não me faz a menor estima no momento. Mas, não obstante, manter-me-ei o propósito, quebrando assim minha infindável sequência de lacunas por preencher. Deem-me, senhores, um tempo - e tudo estará resolvido. A preguiça, o sobrepeso, a coceira nos olhos; todos se lembram de cor, não?
"Não sei que filósofo disse: - Nunca faltarão mulheres velhas." Com efeito, poderia muito bem essa afirmativa haver contraído origens nas reflexões de meus intestinos - pois é verdade, semelhantes obsoletas senhoras repletas de fastio é que existem soberbamente. Coitados daqueles que, assim como eu, insistem, ainda que de forma imune a resultados, nas agradabilidades!... (Sim, eu confesso, seria mais digno de minha parte esclarecer a raridade de tais insistências; não cabe a mim, convenhamos.)
Portanto é isso, meus senhores. A vida imita a arte - ou seria exatamente o inverso? Já não sei mais dos projetos, das ideias; grito apenas por meu direito às desistências - de consciência livre. O que é um problema. Um intrínseco e verdadeiro problema, digo eu. Cedo ou tarde, tenham a plena ciência disso, cobraremos de nós mesmos todas as ausências que representamos. Que seja tardio... Ora!, o diabo que cuide dos imediatismos - viver me exausta de fato. Uma lástima, é sim - uma lástima. (No entanto, um ou outro prazer pusilânime e indecoroso sou capaz de encontrar pelo caminho, eh eh eh!...)

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