Desde o princípio, sem sequer tê-lo visto ao menos uma vez, já soubera de quem se tratava - o amigo. De longe, ausente de conhecimento prévio, tão somente ostentando sentidos e previsões, esperava-o. Como se a vida ainda não houvesse iniciado de fato - faltava-me o amigo. Sim, aquele indivíduo que se despojasse completamente de condições e interesses perante nossa presença; na verdade tais se igualariam por natureza, ainda que os traços, sonhos e comportamentos fossem distintos e estranhos uns aos outros. Não importa, pois, semelhantes são os amigos - cúmplices de toda e qualquer estranheza... Ele existe, e eu sou capaz de perceber tamanha existência aonde quer que esteja - o meu amigo.
E unicamente através dessa percepção inefável é que a minha solidão desertara de sua militância. Eu poderia esperar por mais dez anos - ou dez dias!... - por ele, que simplesmente a diferença consistiria na espessura da lista de assuntos e pendências a ser lidadas, de lá até então. Ainda que falasse outra língua, que acreditasse em deuses, que odiasse o futebol e que não sofresse com horripilantes restrições calóricas... O meu amigo far-se-ia de razão e alento para todos os conflitos - afinal, disto se trata uma amizade. E entender-nos-íamos. Riríamos e choraríamos - e viveríamos. Absolutamente livres da dependência dos sentimentos. Sim, pois, o cativo reside na posse e no desejo - e eu e meu amigo brigaríamos por nossas desenvoltura e liberdade até o fim!
E nasceriam os nossos filhos - ainda que concebidos por imaginárias esposas - e trocaríamo-nos os nomes entre os próprios. E poderíamos estabelecer morada sobre um mundo de distância; nada iria perder-se, tampouco queixa alguma seria criada - os amigos não se abalam e não se trocam sob estados e obstáculos inesperados, estes não são voláteis como os amores e as paixões. E velhos ficaríamos, imunes ao esquecimento e às dores da vulgaridade. E tudo isto, tudo isto, senhores!, sem a necessidade de contato ou olhares - sabeis por quê? Ora, as mentes são incapazes de prover pensamentos singulares: os meus lamentos, as minhas angústias, os anelos e toda a sofreguidão que carrego jamais serão únicos e extintos - levo comigo uma legião estrangeira que vive e teme a morte e o anonimato assim como eu! E mesmo sem conhecê-los, senhores, mesmo sem conhecê-los, faço-me por ciente de suas essências. É assim, e tão somente assim, que conquisto e compreendo a eternidade; a minha continuidade na linha do tempo dar-se-á naqueles futuros tristes, ansiosos e furiosos seres que amarão, sob a condição de exaurirem a própria vida, senhores!, sem fins e exigências, e que exibirão a altivez inclusive no furo dos seus calçados, e que escreverão até sangrar-lhes os dedos sobre a complexidade da alma assim como essa ao mesmo tempo vil e bela, a curiosa humanidade. Pois eles existirão, eles existirão, senhores! E fá-los-ei todos amigos. Eu, que vós escutai bem, recluso neste subterrâneo confinamento, ébrio da própria miséria, serei lembrado e agraciado a todo momento que qualquer um desses meus amigos verta um sorriso ou uma lágrima - sejam tais de protesto ou ironia!...
Bem, agora já é hora do jantar, e os gols da rodada estão sendo exibidos na TV... Ao diabo, ao diabo com essa maldita dieta, eh eh eh!