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quarta-feira, 9 de junho de 2010

Flores Amarelas

Desconheço a existência de deus, do infinito. Foi-me tolhida, há tempos, a última esperança. Sonhos? Estes, sob minha própria força e vontade, vorazmente banidos. Futuro? Irrelevante, desconsiderável. Tempos passados, tenho-os como um guia de aprendizado; um dicionário, uma gramática, um livro de regras e nada mais. Sou este momento, meus princípios estão aqui. Estas palavras, a leve brisa sobre os cabelos, o muro de concreto, um número à minha frente - cento e sessenta. Uma vela, um cemitério. Pai e irmão jazidos no mesmo solo.
Não creio na eternidade, na continuidade da alma. Nossa única e definitiva posse - o corpo. A grande e fascinante dádiva: o tempo. E os feitos, as ações, ah!, tais cabem tão somente a nós e mais ninguém. Eu sou os meus atos, pensamentos e percepções. Ostento a estreiteza quase ímpia da permanente recusa de me curvar os joelhos perante toda e qualquer condição. Julgo sentidos e consciência como a minha bandeira, minha nação. Troco a minha vida por meus dizeres, certezas, minha essência. E assim, afirmo que, numa palavra, não mais preciso de céus e terras prometidas. Os meus dias são limitados; não há problema algum em tal verdade. Meus medos, derrotados, ainda que intrínsecos, reais. E a humanidade - a esta dedico o meu mais sincero amor.
Mas, não obstante, hoje resolvi brincar de construir monólogos intangíveis. Meu pai, que reside há cerca de três anos nesse número, o cento e sessenta, há de fazer as vezes do fantasioso nesta hora. Restos orgânicos, consumidos, misturados à terra, é o que encontro sob meus pés. Sequer uma lápide, sequer uma lápide há aqui! - apenas esse número. E mirando tal cenário, tal afirmação, compreendo, admito e lamento o peso da realidade da vida ordinária. Trata-se, de fato, de algo frio por demais, desalentador - um quê de frustrações e inquietudes -, uma força inefavelmente superior a toda nossa capacidade de lutar. E aí nasce um grande temor - a revolta. A angústia, a atribulação, fracassos, restrições, iniquidades, prantos; tudo vertendo-se em rebeldia e protesto. O mau agouro do caos e do desespero; o autoconsumo. A ausência de luz. A perdição. Faz-se necessário um caminho; é aí que se justifica o sentimento religioso. E por isso, unicamente por semelhante motivo, é que concedo as minhas gratidões a este senhor de iludir, o criador da fé - ainda que tal, para mim, esfacelara-se por completo.
Portanto, aqui, sentado sob pedras, já de costas àquele número, volto aos meus sonhos de infante. “Pai, sua luta continua em mim; talvez perante maiores estranhezas, quiçá sob diferentes complexidades, ambientes. Seus passos não foram esquecidos. Suas palavras, meticulosamente reproduzidas, divulgadas - não por mim; o meu orgulho me impede de fazer algo que não seja nomeado de próprio, único. As lembranças, ainda que permanecidas tão somente num âmbito familiar, perduram. E os atos e as reflexões, estas lhe concedem o título de eterno - a verdadeira, a concreta longevidade. E os deuses e os anjos, que seguem sem sequer saber de nós, não são mais necessários. Por quê? Pelo seu exemplo, pela sua história; pelo meu presente, pelo tempo que ainda me resta - e por nossa arte de amar.”
Se eu conseguisse mesmo brincar de sonhar, de voar e conversar com o improvável, dir-lhe-ia, numa palavra, ainda que tardia e por vezes repleta de negligência: - Obrigado. Trata-se disso; a força que me criara, a inexplicabilidade de minha existência, o sentido e o propósito, o princípio se faz naquilo que você foi. E o fim?... O fim, eu haverei de criá-lo. Simples, pleno, possível.
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Momento ínfimo e fugaz de devaneios de minha parte. Eu cá já me dou de encontro à porta de saída. Eu, homem, egoísta, saturado em vaidades, vivendo unicamente concretidões. Mas, não obstante, uma verdade inesperada: naquela terra revestida de ossos e carnes, assim, sem mais nem mais, nascem pequenas flores amarelas, despojadas de planejamentos e previsibilidades - a cor da sabedoria, a cor favorita...

3 comentários:

Bernardo Amaral disse...

"Nossa única e definitiva posse - o corpo. "


VOCÊ SEGUE OS MESMOS PASSOS DO VELHO ANTONINO MEU CARO. PARABÉNS PELA LEVEZA DAS PALAVRAS E DA RELEVÂNCIA DAS SUA IDÉIAS....SEM BABAÇÃO DE OVO,SINTO-ME FELICITADO DE PODER SER SEU AMIGO E TER CONVIVIDO QUATRO ANOS EM VIÇOSA COM UMA PESSOA TÃO INTELIGENTE!


SUPER ABRAÇO

BERNARDO

Unknown disse...

Enquanto lia seu texto, não pude deixar de me sentir profundamente tomada por um sentimento estranho de impotência, como se nada pudesse ser feito contra as frustrações da vida, contra os efeitos dolorosos do tempo. O tempo, que também é uma dádiva, como você mesmo disse. O tempo, a quem matamos, mas que nos enterra, parafraseando Machado. E não me lembrei só de Machado também, mas de uma frase, não me lembro onde a ouvi, uma frase que dizia: não somos o que dizemos, mas o que fazemos. Os atos, nossos atos, eis o legado que deixamos ao mundo. Seu texto me comoveu sinceramente, meu amigo, não sei nem muito o que dizer.

Marina da Silva disse...

Belíssimo texto! Abç. Marina