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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Brilho De Manhã (segunda parte)

Essa noite ela resolveu sair. Por aí, nada demais, nenhum plano. Apenas se cansara de ver todas as noites se acabarem da mesma forma - cedo, um sentimento permanente de atraso, uma tela de computador ligada - e saíra. Apesar dos inúmeros e insistentes convites de amigas e colegas de trabalho para tal, não possuía alguém em mente, sequer algum lugar. Sentar-se, beber algo, comer algo, ver pessoas - desconhecidas de preferência. O que fazer, ela ainda não o sabia. E por mais casual que fosse, ainda assim, gastara mais de duas horas, distribuídas entre arrumar-se e criar coragem. Seguir em frente, deixar-se levar por impulsos; talvez aquilo fosse bom para ela. Ela não desistiria. Estava pronta. Pegara as chaves do carro, decidida, sozinha... E assim saíra mesmo de casa. E o que era para ser um simples café, para ela transformar-se-ia numa noite de gala.
Apesar da ocasião - era uma sexta-feira - a cidade não se aparentava tão cheia assim, sufocante, angustiante. “Ótimo!”, ela pensava. Detestava tumultos, badalações, multidões. Um Café Bar era o que veio primeiramente em seus pensamentos. “Parar o carro, pedir algo, sentar-se... Ir para casa.”, na verdade ela ainda estava com medo; talvez não medo, mas tão somente uma incerteza. Não era habitual de sua parte semelhante comportamento, portanto era de se esperar aquela sensação, tal estranheza, insegurança. A noite parecia tão grande e desconhecida para ela... “Tudo bem, tudo bem, eu consigo...”, ela reunia forças. Encontrara uma vaga para estacionar. Respirou fundo, dois leves últimos olhares no espelho retrovisor interno, e logo depois todos que porventura passassem por ali puderam ouvir o som costumeiro do alarme automotivo. Ela estava lá, na rua, noturna, luzidia, inebriante, enigmática.
Ela se sentou frente a uma mesinha primeiro, depois pediu algo. O atendente a olhava timidamente, dizendo o mínimo necessário. Nem cinco minutos e pronto, a bebida já estava lá. “E agora, o que fazer?”, ela aparentava desdém, mas havia apenas inquietação. A maioria dos olhares se voltava para ela, e os seus donos se mordiam por improvisarem uma aproximação. Porém, não seria um mero ser ordinário capaz de tal feito - ela exalava altivez, ainda que de forma reflexa -, sua beleza espantava qualquer espécie de figurante. Tão somente um príncipe encantado - o seu príncipe encantado! - seria audacioso o suficiente para lhe dirigir a palavra (de preferência que o fizesse com um sapatinho de cristal em mãos, eh eh eh!)... Não obstante, logo, logo algo aconteceria.
Quando ela estava com fome e impaciência suficientes para ficar ali, sentada e parada, acenou para o mesmo atendente. Decidiu pedir uma torta de frango, mas na verdade ela desejava dizer e ouvir palavras, ainda que estas fossem oriundas de um simples pedido num Café Bar.
- Pois não, senhora, pois não...
- Eu não estou vendo algum acompanhante em minha mesa, você está? - deus, como ela sabia ser irônica!
- Perdão, senhorita, perdão! - o simples funcionário transpirava, tremia, mas no fundo se sentiu um pouco aliviado com a resposta dela; afinal, por mais improvável que fosse, ainda assim, ela, sozinha... Poderia haver alguma possibilidade.
Ah, mas o pobre e reles atendente ainda não aprendera que, em vidas desinteressantes como as nossas, nunca, nunca tal possibilidade haveria de existir, sob nenhuma hipótese ou circunstância!
- Tudo bem! Eu só quis descontraí-lo, nada mais... - e isso era uma verdade. O seu sarcasmo não passava de outro ato reflexo.
- Como queira. Com licença. - ah, mas a labuta realmente não é uma coisa sagrada e primordial? Pronto, aquele rapazinho já era...
Ela não conseguiu ficar lá dentro por mais tempo. Assim que voltaram com seu pedido, não demorara mais do que outros cinco minutos para se levantar já com a conta paga. Saiu de lá, menos insegura e mais esmorecida, deixando aos demais a idêntica impressão com que entrara, de sua superioridade física e emocional. “Soberba!”, pensavam todos - mas isso se tratava unicamente de autodefesa, de um sentimento de impotência, de apatia de sua parte. E assim, ela retornou decidida ao seu carro.
A poucos passos de seu destino próximo, já em mente com a escolha de voltar para casa, para seu refúgio, ela, quando menos esperava, feito chuva repentina, folga de última hora, provara do sabor do acaso. Desajeitada como sempre fora, ela havia deixado as chaves escaparem de sua bolsa entreaberta. E antes de se abaixar para pegá-las de volta, ela se esbarrou em um corpo estranho. Alguém se prontificara com cavalheirismo - algo tão raro hoje em dia! - e, em segundos, com as chaves em mãos, antecipara-se a apresentação.
- Aqui estão, suas chaves!... Espera, pois, acho que lhe vejo em alguma marcante memória minha... - suas palavras não condiziam com a própria imagem: cabelos desgrenhados, magro, estatura mediana; um qualquer de traços tímidos que, antes de mais nada, sabia muito bem de sua eloqüência.
- Obrigada, muito obrigada, mas eu não sei de quem se trata, senhor...
Nomes para cá, ofícios para lá - ela reconhecera naquele homem a imagem de um antigo conhecido em épocas colegiais. Surpresas, sorrisos, leves exaltações...
- Mas por que você está por aí, assim, sozinha? E já tão cedo, para casa? Posso oferecer-lhe um simples passeio? A pracinha, as vitrines, lembro-me de que gostava disso... - de fato, a sua memória não lhe era faltosa.
E então ela mudara seus planos, permitira-se ao tal acaso. Afinal, não era isso mesmo que ela queria? Um imprevisto, uma novidade, algo que escapasse de suas condições - mesmo ela sabendo que nada, nada contentá-la-ia plenamente. Porém naquela noite ela prometera a si mesma portar-se diferente, desigual a tudo aquilo que costumara ser durante meses, anos. E aquele tempo todo havia a consumido tanto... Toda aquela espera, intrínseca sensação de que o mundo estivesse à espreita do fim de sua existência.
Ela não se lembrara de como nem por que, mas quando se deparou consigo, naquele momento, após dobrar a primeira esquina, já andava de mãos entrelaçadas. Não queria saber mais de prestar atenção nas palavras que saíam da boca de sua súbita companhia; ela olhava apenas para o formato duplo da sombra que se exibia perante as luzes ao redor - postes, vitrines, faróis, alentos... E num átimo, tão somente num ínfimo instante, ela obtivera o que desejara. E antes que o rapaz ao lado pudesse usufruir o que ansiava desde o seu primeiro passo, ela, zombeteira, recuara - ela sempre fizera isso... Simplesmente virara o rosto e, esquivando-se, retomara o seu plano inicial de regresso.
- Já é tarde. Amanhã acordarei cedo. Fique por aqui, não há motivos para me acompanhar de volta. E obrigada pela diligência... - e assim, ela se desfez daquele outro. - Até mais!
Aquilo era uma fantasia e ele sabia disso. No entanto, sabia também do seu lugar, da sua falta de direitos em a reclamar para si. Pois ela era um deslumbre, e ele compreendia a necessidade dela de continuar sendo tal. “Afinal”, ele pensava, “se ela se entregasse assim, trivialmente, para onde iria todo o seu nobre orgulho?” - uma verdade, ainda que indesejável. Não obstante, o simples ato de alcançar os seus passos, por menor que se mostrasse o tempo concedido, valera já por uma noite toda - aquilo possuía o poder de significar uma vida toda! Portanto não havia como queixar-se de tal ensejo. Era ela quem escolhia... E ele não passava da suposição de um possível acontecimento. E aí, aí havia algo de espetacular, nobreza de sua parte em não se agarrar a um lance - que vem e vai, feito brisa do mar, último dia de férias.
“Faz mal não, moça, faz mal não! Eu sou obscuridade, tu és manhã!...”
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Em instantes ela chega a sua casa. Abre o portão, tira os saltos, vai até a geladeira, olha-se no espelho. Dessa vez uma pequena insolência define os seus pensamentos - e não a habitual melancolia. Por um momento ela se sente soberba, elevada - acima de toda a sua insegurança e queixumes. Ela se vê límpida, evidente, inteira. O negrume advindo da debutante madrugada, que impregna os sentimentos de todos os solitários e necessariamente amantes, é tolhido por sua altivez. Ainda que por um momento apenas. Ela se encontra próspera.
Mas, não obstante, falta-lhe a coragem. Talvez não em agir, ao menos não nessa noite, mas tão somente em consentir - na admissão da superioridade de sua busca e da complexidade de seus anseios. Ela vê as possibilidades e as refuta, como um infante que atira a sua comida ao chão. E sorri para si. Ainda que no dia seguinte ela saiba que irá prantear-se... No fundo, ela ostenta dúvidas perante o seu querer - e não dá o braço a torcer! Ela ergue o queixo e se dirige ao seu quarto. Ela dorme segura, indiferente aos sonhos alheios.
E o que ela não sabe consiste no dilema emergente de sua própria condição: ela nascera para a exuberância, não para a simplicidade. Ela é o centro, as redondezas somos nós, homens infelizes. A noite se esvai e ela continua sem alguém por perto - alguém à altura. Ela dorme sem um pingo sequer de lágrimas dessa vez; tais se restringem a verter em nossas faces. Ela dorme consciente apenas de sua harmonia. Imperiosa, intangível, lume de nossos alentos. Longínqua, copiosa - benquista figura, mesto destino, tal qual vã esperança -, a nós laboriosa. Desconhecedora de seu tempo, ação e lugar. Predestinada, salvadora, etérea. De ponteiros contados... Feito brilho de manhã.

4 comentários:

Natália disse...

Angeloo ;)
Mais uma vez seu conto toca a cada pessoa que o lê.
Cada um se encontra, mesmo que em alguma frase, em seus textos!
Você está de parabéns meu querido amigo ;)
Todo sucesso pra você!

Beijo ;*

Michele Lima disse...

Oi Angelo, cara vc tem talento pra escrever! Continue assim! Parabéns

Marina da Silva disse...

Interessante a sua tentativa de desvelar o universo interior (alma) da mulher.Abç. Marina

£an disse...

Uma leve mudança nessa segunda parte, einh? A começar pelos diálogos. Acompanhei todos, como se assistisse a uma cena. Mas talvez a maior (e melhor) mudança tenha sido dentro da própria personagem, mesmo que apenas por um momento. A tomada de decisão... A saída da imobilidade, o orgulho, a altivez. Qual de nós não ansia por atitudes que nos libertem, ainda que pouco, de todas as prisões diárias? São passageiras, na maioria das vezes, mas as noites de mudança talvez sejam nossos mais sinceros momentos de liberdade.