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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Brilho De Manhã (primeira parte)

Ela acorda todo dia com a sensação de que ainda lhe faltam algumas horas de sono. Na maioria deles, acorda cedo. Muito cedo. Vaidosa antes de qualquer coisa, precisa de uma hora ou mais para se arrumar: cabelo, roupas, adereços - tudo muito bem escolhido, de uma forma que só ela sabe fazer. Olha-se no espelho duas ou dez vezes. Atrasa-se. Engana o estômago com algumas migalhas e sai de casa.
Ela diz que não é bonita ou atraente, mas assim que põe o salto para fora de casa é notada de imediato. Ela possui uma beleza que, mais do que simplesmente atração, desperta um sentimento de zelo, proteção. Quem a vê, deseja-a - e não só para uma noite, ainda que isso pudesse ser considerado um grande deleite; mais do que isso, a vontade despertada é de querer mais, de tomar parte -, assim, diga-se de passagem, num arrebatamento inconsciente. Ela possui todo aquele charme que tão somente é possível de ser percebido pelo sexo oposto e, de forma apraz, sempre a prima impressão que se estabelece é fitada continuamente ao longo de quem cruza o seu caminho. Basta ela ceder um olhar e, é bem verdade, corpos inclinar-se-ão. Mas, não obstante, como toda boa dose de insegurança, ela não crê em seu próprio poder, e feito num autêntico conto de fadas ela vive a esperar certa fantasia principiar-se - do nada, que seja!... Isso não lhe importava muito.
Situada nos dias de hoje, não em tempos remotos nos quais uma mulher como tal jamais portar-se-ia dessa maneira, ela trabalha - e muito até! Dois ofícios, duas cidades, horas e horas de condução, visitas e escritório. Alguém importante, de responsabilidades e competências, alguém que se tolhe do direito de cultivar ociosidades - conquanto cultivadas!... Em conseqüência, durante todo o dia ela só possui tempo para suas obrigações. E as fantasias, os anseios, “ah, estes que esperem o seu devido momento!”...
Chega o fim do dia e ela se sente mais cansada do que todos os demais seres do mundo, como jamais esteve antes. Abre o portão de casa, deixa todos os seus pertences espalhados pelos cômodos, liga a televisão, o computador, livra-se dos saltos e prepara sua refeição - nada saudável, apenas algo que lhe satisfaça os sentidos. À medida que o dia se finda, ela vai se tornando melancólica e comum. Pensa o quanto ela deseja trocar tudo que possui por alguém - um alguém para se entregar. Alguém que a elogie, que nunca levante a voz em sua presença, e principalmente que sempre diga as palavras que ela queira ouvir a cada hora, a cada instante. E isso, claro, sem que ela dê qualquer tipo de vestígio ou sinal. “Ainda assim tão simples...”, ela pensa, “Por que é realmente tão difícil?”. E mais uma vez ela diz para si mesma: “Vai ver é a minha falta de atrativos, de coisas interessantes para se mostrar...”.
Não obstante, as horas passam. Duas, quatro, e já é bem noite. E o desespero volta à tona - logo o amanhã baterá à porta! Ela corre para se arrumar, faz de tudo para dormir um pouco mais, com a mesma sensação de sempre: o atraso. E sua mente se livra num átimo de todas as demais angústias - suas três décadas não parecem ser tanto tempo assim...
Mas os dias caem feito folhinhas de um calendário, e ela somente percebe tal movimento quando não consegue mais encontrar certos objetos ou documentos dentre as coisas que deixa acumular nos lugares incorretos. “E a casa já precisa de uma organização urgente!”, pensa consigo mesma. Porém tudo é adiado como sempre... Na verdade, o que ela precisa, o que ela busca não se trata disso. E assim ela sente o próprio vazio. Justo ela, tão bela, tão desperdiçada! Contudo a única coisa de que ela realmente necessita, o primeiro passo, ela resiste em efetuar. E mesmo sorrindo, ela verte lágrimas por dentro.
Outro dia, os mesmos sono e compromisso atrasados. Outra vez ela se levanta sem tempo e coragem para pensar em seus principais problemas - amor, solidão; alguém que valha mesmo a pena e que insiste tanto em não aparecer! -, adiando como sempre aquilo que ela não suporta mais esperar. Ela se permite apenas ao trabalho, estudos, compras, guloseimas, algumas futilidades. E o porquê disso tudo ela não consegue compreender; ou talvez ela simplesmente não queira admitir tal coisa. Vai ver a família, os bons costumes e a moral andam estorvando todas as suas forças - e assim, as suas vontades vão ao encontro da negligência. Outra noite, outro adiar... E sentada, sozinha em frente à tela, ela chora, chora e dorme.
Mas o que ela não sabe é que o motivo de sua procura e anseios serem intangíveis reside em sua própria descrença. Ela sonha tanto, e tanto espera - e ao mesmo tempo diz desejar apenas o simples; e ela acredita em tal dizer, eh eh eh! -, que nada ao redor se torna casto o suficiente para lhe despertar a atenção. Ela se ilude tão facilmente, e no fim é capaz apenas de transformar em lamentos as suas frustrações. Ela escreve tudo aquilo que sente, que almeja - para no momento seguinte jogar tudo fora. Ela abre os olhos para os seus filmes e atores prediletos, e abandona aqueles tantos que lhe pedem tão somente um ensejo, um acaso para lhe mostrar o quanto da diversão ela teima em perder. Mas ela quer apenas isto: um filme, um amor que lhe faça chorar!...
... E eu padeço em lhe perguntar: ora, mas para quê tanto choro?!

6 comentários:

Vampira Dea disse...

Adorei o conto

Marina da Silva disse...

Interessante e me fez lembrar Nietsche quando o filósofo nos diz que é preciso se tornar o que se é e que nesta busca é preciso saber o quanto de verdade podemos suportar. Abraço. Marina

Roxana disse...

Realista.é nesse despertar que "ela" se pergunta o que a motiva levantar toda manha sabendo que vai ser a mesma coisa. A mesma rotina. Acredito que é a falta de sonho, de esperança. A falsa´idéia do declínio precoce...

£an disse...

Nossa, Sonny! Arrepiei aqui! Puxa... Não vou me demorar na estrutura. Basta dizer que a escrita é envolvente o suficiente pra prender o leitor em cada linha. Cria uma ansiedade gostosa de saber mais sobre "ela", de conhecê-la melhor...

E quanto a Ela? Puxa, é inexplicável o sentimento que me toma agora. Eu me vejo nela detalhadamente. A insegurança, os sonhos, os desejos, a demora em tomar alguma postura, em mudar. Só não arrebato (ou não sei se arrebato) tantos corações e olhares como os que Ela consegue. Ela é tão feminina, é tão de verdade que eu posso senti-la em mim. Tá ficando cada vez melhor essa sua capacidade de fazer com que sintamos seus personagens... Estou fascinada... Poucas vezes li coisas que me soassem tão familiares, tão minhas...

Lindo! *-*

Anamaria disse...

Parabéns pelo blog, e pela personagem!!
Leitura envolvente!
( a Alana me indicou seu blog)

Unknown disse...

Eu adoro esse conto!Me identifico muitas vezes com as situações.
Você realmente é demais.

Beijos saudosos.