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domingo, 25 de abril de 2010

Dois Contos (um)

Sinto-me cansado. Das desculpas e dos motivos que insisto em produzir para ludibriar-me os fracassos. Cansado de ostentar altruísmo e positividades. Exausto estou dessa crônica condição de levantar, perder, dormir. As luzes lá fora tão somente refletem a minha falta de ventura - encontro-me mesmo fatigado de tudo. E isso não se trata de algum protesto, tampouco resignação; aqui não há nada mais além de desistência. O meu abatimento requer o direito de me tornar vil. Afinal, quem se importa?... Onde está o mundo todo agora?
As contas acumuladas em cima da mesa, a geladeira vazia, o cachorro definhando... - a vida girando os seus piões. Os dias vêm, as noites vão; o sono já não é mais reconfortante. Aquele vazamento no banheiro e na cozinha - eu já recebera notificação por escrito sobre tal. Mas que diabos!, se nem minha essência mal se contém em ínfimos punhados, por qual razão preocupar-me com a maldita água? “Água é vida”, malquista danação!... A casa, a casa já não é mais a mesma. Mas, não obstante, a solidão permanece idêntica a de outrora, antigas condições que se afirmam em ciclos e repetições - estas agarram minhas entranhas, temendo a morte mais do que eu mesmo. Um carro percorre a rua silenciosa, ouço risos de mulher.
Madrugada afora, sem sono nem ânimo para dormir - porque até para dormir e sonhar é preciso certa vontade... -, contando mais uma vez minutos e horas em um relógio digital, verificando o que eu não tenho de importante para fazer no dia seguinte, e o pior, lutando com todas as parcas forças que ainda possuo contra o próprio passado - inutilmente, o que torna meu estado ainda mais lamentável -, minha mente remete a lembranças. Lembranças e saudades. Em seguida, decepções - e lamentos e arrependimentos. Ah!, como um sentimento conduzido e expressado de forma equivocada revela tão somente a depreciação... Valores, personalidades, atitudes, tudo por água abaixo. E tudo, tudo por causa de um passo em falso - uma maldição. De fato, é bem verdade, não se pode errar jamais... Jamais.
O som ligado se torna a única amostra de atividade em toda a casa - havia sequer luzes acesas. Um R&B no estéreo, uma performance tão bem executada - e por alguém mais novo que eu... Um canto triste e altivo, feito minha própria miséria. Angústia. Um ano, dois. O envelhecimento. Minha vida?, uma página em branco - a ausência completa de registros. Um conto sem graça, isto é o que tenho, digo eu! Coisas que poderiam ser, fatos que deveriam acontecer, nada mais... Por que eu não posso simplesmente figurar entre os especiais, por quê? Ah!, quisera eu ser ao menos louco feito meu amigo D. Quixote - mas nem a loucura, nem a loucura permanecera ao meu lado...
Jazido no chão da sala, já em silêncio pleno - foi quando dera por mim, eu não sabia mais da realidade em minha volta -, entregue ao torpor da falta de vigília; vi-a mais uma vez. O rosto diabolicamente estreito, feito rara porcelana. Um sorriso austero, longos e lisos cabelos; olhos, que por si só já denunciavam o extraordinário, e olhares penetrantes - e cativantes, cativantes e hipnóticos. Uma figura capaz de justificar uma epopéia ou uma viagem ao tempo; apta a exaurir toda a minha alma. Na verdade, a causa final de minha desgraçada sorte.
Iria dizer algumas palavras, mas minha voz não estava mais sob meu controle - ela porém sabia ler minha mente. E não havia um quê de interesses de sua parte. Tão somente apatia e frieza. Aquela moça de traços e passos inefáveis ia e vinha em meus infames e insignificantes limites - e não deixava transparecer nada, nada! Sempre fora assim. Não houve mesmo sequer palavra. E aqueles minutos sofríveis - e ainda assim desejáveis, ah!, tão desejáveis... - chegavam ao fim. Ela começara a se esfacelar, como num sonho já desperto, uma noite com os seus momentos contados - mas se tratava justamente apenas disso, um sonho, não? Ou estaria enganado novamente... Súbito, num átimo quase que imperceptível, em meio à névoa que rondava suas formosas linhas, únicas e imunes ao esquecimento, assim, de relance, eu percebi. Algo. Vira e acordara. Não, não podia ser tão somente um sonho... Ali havia alguma certeza, alguma concretidão - um mirante, um lume a seguir. Ainda que isso se tornasse uma dúvida, um eterno indagar, tão somente uma falha em minha descrição, um motivo fora o que eu vira. Uma razão, uma brecha, uma saída e um caminho. Antes de seu completo desvanecimento, um gesto negativo com a cabeça. E aquele olhar tão sublime se desfazendo sob um novo rastro de mágoa - uma mágoa que me escapava do conhecimento até então.
O relógio despertador clamava por sua existência - ao diabo, ao diabo tal pertencia, ninguém mais senão o diabo! Para o meu azar, o dia far-se-ia costumeiro: trabalho, trabalho e trabalho...
“Afinal, senhora distante de minha vulgar e ignomínica rotina, seria rancor ou indiferença o que habita suas infelizes lembranças de mim e de meus infortúnios?”

3 comentários:

Unknown disse...

Um conto ou uma anotação em um diário? Confesso que na medida em que ia lendo me perguntei o que era ficcção ou inspiração do real. Ah, mas, também, tudo que escrevemos é em parte inspirado naquilo que vemos, vivemos, presenciamos... Então, noto o descontentamento do personagem, as constatações dos erros, as desilusões... Espero que o personagem consiga superar e esquecer o vazamento de água. hehehehehe

Ótimo conto!

Natália =D disse...

Ângelo,

Mais uma vez um excelente conto seu, MEU DEUS! Adorei ;)
Você continua escrevendo maravilhosamente bem! ;)
Espero que o personagem do conto, decida o melhor caminho a se seguir ;)

beijos amigo ;*

Saulo disse...

Tão rico de detalhes, sentimentos tão bem traduzidos... parabéns pelo post, aliás, gostei ainda mais, desse!