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quinta-feira, 4 de março de 2010

A Bicicleta

Era uma terça-feira, chuvosa por sinal. Mal tinha se levantado e já havia percebido a inconveniência iminente - a sua condução atual era uma bicicleta. “Que maneira ótima de se começar tão perspicaz dia de trabalho!...”, dizia para si - ele cultivava o péssimo hábito de conversar em voz alta com a própria consciência. Com os minutos contados, não possuía tempo de sobra sequer para pensar em alternativas: o jeito era vestir a velha e suja capa de chuva e sair pedalando em meio a poças e gotas d’água, sujeito a indelicadezas alheias típicas, em tais dias, de condutores automotivos - eles adoram acelerar suas máquinas frias, demonstrando toda a revolta interna existente em suas frustrações diárias, espirrando água e lama por todos os lados e infaustos transeuntes presentes; na verdade, adrede, eles procuram por tais infelizes!
Sempre que chovia ele gastava de cinco a dez minutos a mais em seu trajeto, em direção ao local de trabalho. Entrava pela porta dos fundos do escritório, por causa de semelhante meio de locomoção um tanto quanto insólito para aquele ambiente. Ele trocava de roupa ali mesmo, todos os dias: o seu uniforme ficava alojado em uma pequena gaveta localizada na despensa. Ele era o único que não possuía carro ou moto - ou qualquer outra coisa motorizada. Detestava condução coletiva, estimava uma rotina mais independente e ativa. No fundo, sentia-se até melhor do que todos os outros: ele pedalava para ir ao trabalho; os demais dirigiam, e engordavam. Ele avaliava o seu desempenho sobre rodas, cronometrava o tempo de cada dia, a sua evolução em termos atléticos. E se via feliz com isso - com uma coisa tão à-toa! Mas assim eram os seus dias, recheados de pequenas felicidades que só ele sabia detectar, ainda que chovesse - e muito! Não obstante, um dia de trabalho pela frente...
“Ah, mesmo daqui do lado de dentro da janela, como esse mundo de lágrimas celestes que verte sem parar me cansa ao extremo, eh eh eh!”; e assim começava de fato o dia para aquele rapaz. Documentos, ofícios, cópias, números: o verdadeiro serviço braçal - e digital. Todas as manhãs, exceto aos domingos e feriados, a mesma rotina. Porém, para ele, sob qualquer forma e circunstância, os dias não deixavam de ser únicos. Todos os outros daquela sala pensavam tão somente na hora do almoço, o intervalo de toda aquela tormenta. Mas ele, não... Ele enxergava, ali dentro e, mais ainda, no lado de fora, um universo vivo e cheio de possibilidades. As lamúrias, os resmungos e as caras fechadas significavam ironia e senso de humor; as pessoas nas ruas, novos e interessantes corações por descobrir - era desse modo que ele interpretava o seu dia-a-dia. Ele vivia sozinho, mas não se sentia assim. Terminava uma tarefa em sua mesa, via alguém se escondendo da chuva pela janela. Um colega de trabalho escapava da labuta para um café sem permissão, um cachorro se abrigava debaixo da marquise. E ele achava graça de tudo...
Dava-se o fim do dia, e todos ali não queriam mais saber de nada: colegas, papéis, despachos, horas e minutos. Exceto aquele rapaz; ele sempre saía por último, não havia por que ter pressa. Trocava de roupa, destrancava a sua bicicleta, alegrava-se com a trégua pluvial. “E não é que voltarei seco para casa?!”, dizia em voz alta para quem quisesse ouvir - na maioria das vezes, o mesmo cachorro da marquise, uma espécie de inquilino honorário do local. Mas naquele dia, havia outra ouvinte, especial, desconhecida, curiosa.
Os olhos. Ele se ateve aos olhos. Duas esferas reluzentes, enleadas àquela intrigante criatura que conversava com cachorros de rua; um semblante comum - traços finos, cabelos longos, um pequeno volume que preenchia discretas peças de vestuário. Um contraste de imagens estava criado: ele exibia ângulos retos, cores vivas, um aspecto forte, ruidoso. Mas ele se encontrava maravilhado com aquele par de olhos. Uma dádiva naquele fim de tarde...
- Que engraçado, moço!... O cachorro é seu amigo? Ele tem nome? Ele já lhe respondeu alguma vez? - um riso amador veio junto com aquelas jocosas palavras. Um brilho de inocência, um anoitecer de expectativa.
Todos os dias, ensejos, contentos, nuances, doces minúcias. Ele vivia só, ordinário; não obstante, ele sempre improvisava uma maneira de distinguir excelências. Seus afazeres, seus hábitos. Não havia pompa, sequer louvor neles. Mas ele sabia usufruir seu tempo, condição e lugar. Um pescador de perspectivas. Aqueles olhos - ele iria sonhar com aqueles olhos mais à noite.
- A imprudência é toda minha, senhora. Bastava-me comunicar com ele em sua linguagem costumeira e tudo estaria resolvido! Não é mesmo? - e num átimo todas as dúvidas e precauções se extinguiram; ele já se via apto a desafiar o mundo por aqueles olhos... - Enfim, quer uma carona... De bicicleta?

3 comentários:

Roxana disse...

viver um dia de cada vez, da melhor forma possível, prestar atencao nos detalhes e tirar proveito deles, com otimismo, oportunidades virao, quando voce menos espera...

£an disse...

HAHAHAHAHAHAHAHAHA, eu quero uma carona de bicicleta!!! Ai, não encontro rapazes assim por aqui. São sempre tão apegados às máquinas frias, coletivas - que ainda por cima engordam!

Esse texto, esse personagem, tem toda a leveza e esperança dos espíritos jovens. O que é a incoveniência da chuva - presente também em textos anteriores - face à imensidão da vida?

Adorei, Sonny!

Beijão, e continue escrevendo!

*-*

Michele Lima disse...

Angelo, vc viu o meu o conto lá no blog. Não escrevo como vc né, mas a gente tenta rsrsrs...

Ah, mais uma vez parabéns pelo conto!